Você conseguiu o molde perfeito. Já testou a modelagem em um tecido qualquer para acertar as pences e recortes. E aí, na hora de fazer a peça definitiva, vem a dúvida: que tecido vou usar? Essa dúvida fica ainda pior considerando que a maioria das nossas fontes está em inglês e, obviamente, não dá para chegar na loja de pedindo pelos nomes ingleses dos tecidos (tem loja que os vendedores nem sabem direito os nomes em português!). O post de hoje será rápido e servira como um glossário e guia curto de tecidos seus trajes históricos e releituras
Quanto mais “historicamente correto” for o seu traje, mais você deve correr para as colinas fugir dos tecidos sintéticos. Isso significa que você não pode usar fibras sintéticas sob hipótese alguma? Claro que não. Só que os tecidos naturais, além da acuracidade histórica, são muito mais confortáveis de serem usados.
Existem 4 fibras naturais que são largamente empregadas na indústria têxtil e que você pode encontrar com facilidade e com uma grande variedade de preços, cores e estampas. Algumas deles, nas versões mais baratas, estão até disponíveis em versões mistas, que combinam fio sintético e fio natural sem criar uma aparência de material puramente sintético. Ao escolher um tecido para seu traje, sempre faça a si mesmo uma pergunta bem simples: esse material tem cara de fantasia barata de Carnaval/Halloween? Se a resposta for positiva, melhor procurar outra coisa.
Normalmente, os atendentes das lojas de tecido não têm um grande conhecimento na parte de figurinos e trajes históricos. Nesse caso, você vai precisar ir à loja com um certo tempo disponível, para que possa passear por ela, observar os tecidos, anotar os nomes deles (que variam até entre as regiões do Brasil, por incrível que pareça) e, se a loja permitir, até tirar fotos ou pedir pequenas amostras. É bom manter um caderno com essas amostras, identificando o nome da loja e do tecido, a data em que você conseguiu a amostra, o preço na época e, se possível, a composição do material. Esse caderno vai certamente servir para referências futuras!
As 4 principais fibras naturais
LÃ
Feita a partir do pêlo principalmente de ovelhas (embora outros animais também possam ser usados), a lã é uma das mais antigas matérias têxteis utilizadas pelo homem. Tecidos rústicos de lã foram encontrados em sítios arqueológicos europeus datados de 14.000 anos. Desde a Pré-História, a lã e o linho se estabeleceram como as principais fibras têxteis utilizadas na Europa e suas tecnologias de tecelagem, tintura e estamparia foram sendo aperfeiçoadas ao longo dos séculos. Sendo uma fibra razoavelmente forte, que resiste ao stress e a técnicas agressivas de tinturaria, podia ser usada em praticamente qualquer tipo de trama, dando origem a tecidos que poderiam ser quentes ou frescos, dependendo da necessidade individual.
No século 19, a lã era usada para trajes masculinos populares e/ou de uso diário (calças, paletós, meias) e também em trajes femininos na mesma situação (saias, casacos, meias), além dos trajes de inverno em geral.
Na foto: traje de passeio 1910s em lã pura. Acervo da Minnesotta Historical Society (EUA). Clique na foto para ver o traje em detalhes.
SEDA
De origem chinesa, a fibra da seda é obtida a partir do desmanche do casulo do bicho-da-seda, uma operação demorada e que se refletia no preço astronômico que os tecidos desse material tiveram durante a maior parte da história. Já conhecida durante a Antiguidade, foi durante a Idade Média que a seda se transformou na rainha das fibras têxteis. Seu uso era regulamentado através das leis suntuárias, que estabeleciam quais tecidos podiam ser usado por cada grupo na sociedade, além de regulamentar cores e estampas. A seda foi a grande responsável pelo enriquecimento da burguesia italiana na Idade Média. Devido à sua alta procura e valor de mercado, seda começou a ser produzida na Europa, primeiramente na Itália, mas no século 16 o centro de produção se deslocou para a cidade francesa de Lyon. Até o século 19, a França permaneceu como a principal produtora de seda no Ocidente e as sedas francesas eram particularmente valorizadas.
Vários tecidos são obtidos a partir de diferentes métodos de tecelagem aplicados às fibras de seda: cetim, tafetá, organdi, musselina, diversos tipos de crepes, alguns veludos (embora a maioria que você vai encontrar seja de fibra sintética) e certos tipos de renda.
A seda é obrigatória para os trajes de corte do Renascimento até a Primeira Guerra Mundial, variando as cores e estamparias de acordo com os costumes de cada país.
No século 18, a seda será utilizada nos trajes masculinos e femininos de corte, aparecendo também nos coletes dos trajes de cavalgada e nos stays.
No período da Regência, a seda aparece como mandatória nos vestidos de baile e jantar, em versões leves como cetim, organdi, musselina, tule e gazar.
Na Era Vitoriana, tecidos de seda são obrigatórios nos vestidos de baile, frequentemente com uma base de tafetá com sedas leves sobrepostas. Também aparece em trajes de passeio (tafetá e veludo são os mais frequentes) e trajes de jantar.
Na Era Eduardiana, a seda fica restrita aos trajes de jantar, ópera/teatro, baile e corte e a detalhes nas lapelas masculinas e luvas.
Na foto: detalhe de um vestido de noiva dos anos 1840.
LINHO
Junto com a lã, é uma das fibras têxteis mais antigas usadas pelo ser humano. É uma fibra de origem vegetal, forte e durável, que pode ser encontrada em toda a região do Mediterrâneo, além do norte da África, desde o final da Pré-História. No Egito, por exemplo, era utilizado nas roupas diárias e no processo de mumificação, sendo produzido em diferentes pesos e tramas. É possível que os fenícios, um povo de mercadores originário do atual Líbano, tenha desempenhado um papel fundamental na disseminação das diferentes variedades de linho.
Devido às características da fibra, o tecido de linho permite que a pele respire, ajudando a manter o corpo fresco e seco, em produzir atrito com a pele nas temperaturas mais altas. Por isso mesmo foi amplamente utilizado em roupas de verão, além de roupa-de-baixo e toda a rouparia doméstica (toalhas, guardanapos,lenços e até cortinas). É um tecido de fácil lavagem, que aceita vários tipos de tintura e estamparia, mas que também amassa com facilidade.
O linho foi, junto com a lã, o principal tecido utilizado desde a Idade Média até o século 19, quando os tecidos de algodão ingleses, de produção industrial, tomaram o mercado.
O linho 100% natural é um material de preço elevado na Brasil, mas é possível encontrar variações mistas que imitam o acabamento do tecido natural, mas que são menos favoráveis à transpiração da pele e podem causar irritações.
Curiosidade: a palavra francesa lingerie deve seu nome ao uso preferencial do linho para a roupa íntima.
Na foto: Traje feminino para velejar de 1897. Coleção Particular
ALGODÃO
O algodão é um tecido relativamente jovem, já que sua popularização só acontece a partir da metade do século 18, quando as inovações tecnológicas permitiram que a fibra fosse beneficiada mais rápida, assim como a tecelagem foi acelerada pela invenção dos teares mecânicos. É um tecido confortável, que resiste bem à lavagem (mas que encolhe, então é necessário lavá-lo sempre antes de cortar a roupa) e permite a transpiração da pele, mas mancha e amassa com muita facilidade.
Há vários tecidos de algodão puro ou misturados a fibras sintéticas: cambraia (chamada de “cambric” ou “batiste” em inglês), brim, chenille (muito bom para capas de senhora!), chita, cretone, fustão, gaze, laise, musseline, percal, popeline, sarja, tricoline, baeta, calico, veludo cotelê (que não é uma fibra de seda, originalmente)…
Devido ao seu preço mais acessível, o algodão é um bom substituto para o linho nas roupas íntimas e forros de trajes históricos, mas apenas nos casos em que a acuracidade histórica não seja uma exigência até na parte interna da roupa. O algodão é particularmente útil para as anáguas do século 18 e 19 devido à facilidade com que pode ser engomado e lavado.
Na foto: detalhe de um traje feminino da década de 1780, em algodão estampado. Acervo do Museu Metropolitano de Nova York (Estados Unidos)
A escolha do tecido
Ao escolher um tecido para um traje “historicamente correto”, você deve tentar pensar como o alfaiate/costureira/modista que criou a peça original e fazer algumas concessões. Por que estou dizendo isso?
Porque muitos tecidos antigos não existem mais, ou mudaram de nome ou mantiveram o nome mas têm outra estrutura!
Talvez a peça na qual você está se inspirando seja um cetim brocado, mas você encontrou um jacquard com a padronagem e o toque muito parecidos com o tecido original. Não fazer a peça com esse jacquard só porque não é um cetim brocado seria bobagem, se o resultado final seria o mesmo. Pode soar um pouco fora de contexto essa colocação, mas é algo que acontece muito fora do Brasil e, com o desenvolvimento das nossas pesquisas e habilidades, tendemos a ser cada vez mais exigentes com as peças que fazemos. Novamente, é preciso fazer concessões e adaptações para manter-se dentro das suas possibilidades de materiais e recursos financeiros. Se isso significa que você precisa trocar um linho puro por um linho sintético, sem afetar muito o resultado final, vá em frente! Um outro exemplo é a troca da organza (fibra natural) pelo chiffon de seda (fibra sintética): muitos vestidos da década de 1860 tinham várias camadas de babados de organza, mas a organza do século 19 é muito mais parecida em termos de trama e caimento do chiffon de seda que temos hoje do que da própria organza moderna.
Um fator muito importante nessa escolha é o caimento do tecido. Você pode até fazer uma vestido medieval com oxford, por exemplo, mas ele jamais terá o mesmo “peso”, nem o caimento de um vestido medieval feito com lã. Nesses casos, quando você precisar fazer uma substituição, é bom pedir que o vendedor traga para você o tecido mais próximo do original e os possíveis substitutos, para que você possa comparar as propriedades dos tecidos e fazer a melhor escolha possível.
Uma coisa que deve receber atenção especial é a padronagem. Se você estiver em dúvida sobre a estampa do tecido, é melhor procurar por um material liso. Mesmo que a acuidade histórica não seja seu objetivo principal, desfilar com uma estampa petit-pois num vestido medieval não é muito adequado – a menos que sua proposta seja a de fazer uma releitura. Há várias ótimas bibliografias sobre as história das padronagens (“textiles”), mas a esmagadora maioria está em inglês e disponível com preços um tanto quanto salgados. Mas, graças a essa maravilha que é a internets, é possível visitar os acervos online de vários museus, que disponibilizam fotografias de trajes originais, inclusive com closes dos tecidos e aplicações, para que possamos observar os detalhes.
Para quem está trilhando o caminho da autenticidade histórica, é preciso ter em mente não só o período escolhido, mas a posição social do personagem que se quer representar. Durante a história da humanidade, várias cores e materiais ficaram restritos a apenas um ou outro grupo, até mesmo por determinação legal, através das leis suntuárias; é muito interessante que você pesquise sobre elas enquanto estiver planejando seu traje. Também é fundamental conhecer pelo menos um pouquinho sobre o desenvolvimento das técnicas de tingimento de cada época, para entender porque determinadas cores só vão aparecer na segunda metade do século XIX (tons vibrantes obtidos com anilina) ou na Era Napoleônica (quando se desenvolveu a técnica de alvejamento que permitiu o surgimento dos tecidos realmente brancos).
Não existe uma fórmula única para a escolha de materiais para um traje histórico/releitura. Talvez, se houvesse, acabaria com toda a graça do processo que é a pesquisa. É reunindo imagens de referência, procurando textos, compartilhando experiências e dúvidas com outras pessoas que construiremos trajes (e acessórios) cada vez melhores. Com uma boa pesquisa, você não terá apenas um traje, mas toda uma bagagem de conhecimento histórico que fará da sua vestimenta uma experiência de aprendizagem – para você e para as pessoas com quem você dividir as informações que obteve.
Uma última dica: sempre dê uma olhadinha na sessão de decoração/cortinas/estofamento. Lá é possível encontrar tecidos mais encorpados (como jacquards e cetins de cortina) que são um pouco mais próximos dos brocados dos séculos 17 e 18, além de tecidos leves (como organza e chiffon) em versões com até 3m de largura, o que facilita muito sua vida na hora de fazer babados. Apenas leve em consideração que a aparência do tecido não pode ser exageradamente sintética.
FONTES
- http://yourwardrobeunlockd.com/freebies/257-dianafabrics
- http://thedreamstress.com/2009/06/fabric-what-is-historically-accurate/
- “7 Strategies for Creating Realistic Historical Clothing from Chain Fabric Stores”, por Jennifer Rosbrugh.