A Modista do Desterro – Pauline Kisner

Como encontrar referências para trajes de época?

Hoje fui abrir as estatísticas do site e uma chave de busca muito especial apareceu por lá: “referências para trajes de época”. Isso acendeu uma luz vermelha nessa cabecinha.  Falo aqui várias vezes sobre moldes históricos, silhuetas específicas e escolha de materiais, mas percebi que ainda não tinha escrito nada sobre uma ideia mais geral de onde encontrar referências para trajes de época. E não, filmes de época podem ser lindos, mas dificilmente são o tipo de referência historicamente correta que você precisa como ponto de partida. As melhores referências são, de longe, trajes e moldes originais, mas nem sempre eles estão disponíveis; aí entram as pinturas e ilustrações da época que você quer retratar.

Quando estamos trabalhando com esse tipo de documento (para fins de esclarecimento: quando falo “documento”, não estou falando de papelada oficial/emitida pelo governo; estou me referindo às fontes que podem ser usadas numa pesquisa), é preciso ter em mente que é, antes de tudo, arte. E a arte anterior ao século 20 não tinha a liberdade criativa que tem nos nossos tempos. A pintura dos séculos passados era muito mais do que uma mera  ancestral da fotografia. Os quadros tinham uma série de códigos muito estritos, simbologias próprias que cada época conseguia “ler”. Mas também era uma demonstração de poder. Nobres e burgueses (comerciantes, banqueiros, armadores de navios, donos de indústrias e alguns profissionais liberais) se faziam retratar em determinados ambientes e em trajes que marcavam seu lugar no mundo, que mostravam quem eles eram e o que tinham conseguido realizar nessa vida. Também era quase regra que as pessoas fossem retratadas de forma idealizada, de acordo com as concepções de beleza de cada época e também pensando na imagem que gostariam de passar às outras. Sim, estamos falando de marketing pessoal. Querem um exemplo bem prático?

referências para trajes de época

Na pintura de Jacques-Louis David, o Cônsul Napoleão cruza os Alpes (1800). Observe não só a questão estética (movimento, volume, profundidade), mas a ideia que esse retrato passa acerca da figura de Napoleão Bonaparte. O braço erguido, apontando a direção das tropas e guiando, simbolicamente, a França e seu povo. A postura resoluta, a calma de quem está montado sobre um animal inquieto…é épico! Mas será que isso correspondia à realidade do momento em que a travessia dos Alpes aconteceu? Estaria Napoleão tão bem-vestido e alinhado no meio de uma campanha penosa, que rolou em pleno inverno europeu?

Trabalhar com fontes históricas é bem parecido com um trabalho de detetive. Não existe uma fonte isenta ou neutra. Toda fonte histórica precisa ser “lida” dentro do contexto em que ela foi produzida e algumas perguntas são fundamentais aqui até para entender porque elementos do vestuário são apresentados de uma maneira ou de outra:

  • Quem encomendou ou produziu o quadro/ilustração/foto?
  • Qual era o objetivo ao produzir essa imagem?
  • A quem se destinava essa imagem? Por quem ela seria vista?
  • Como todas essas coisas poderiam afetar a roupa e a representação do corpo?

No caso do imponente retrato de Napoleão ali em cima, ele foi encomendado pelo embaixador espanhol em Paris. Ao derrotar a Áustria, um velho desafeto dos espanhóis, Napoleão acabou reaproximando a França e o Reino da Espanha. Para celebrar esse relacionamento recém-renovado, foram feitas várias trocas de presentes entre os governantes dos dois lados através de seus habilidosos diplomatas. Um dos presentes oferecido pela Espanha à França foi esse quadro de David, que teve quatro versões diferentes produzidas: a primeira foi exposta no Palácio Real de Madri, a segunda no Castelo de Saint-Cloud, a terceira no Palácio dos Inválidos e uma quarta terminou no Palácio da República Cisalpina (um pequeno Estado criado dentro da atual Itália pelo próprio Napoleão).

Com essas informações, a gente começa a entender porque Napoleão foi representado de um modo tão épico e super bem-vestido… Mas, como Jacques-Louis David era um pintor extremamente habilidoso e detalhista, nem tudo é fake e sim, dá pra usar esse quadro para pescar algumas referências para trajes de época. A gente consegue identificar bem as cores e até supôr quais tecidos eram usados em cada peça com base na aparência do quadro. Os bordados militares também são bem detalhados, assim como a bota, o chapéu e até a roseta tricolor que está no chapéu. A gente só precisa saber o limite da fonte: ela serve como referência para um versão idealizada de um traje militar de gala, mas está muito longe do estado em que um soldado ou até um francês estaria no momento da travessia dos Alpes.

Compreendendo essas questões e com um pouquinho de paciência para buscar no Google, a pintura antiga pode ser uma excelente fonte para quem procura boas. referências um traje de época ou mesmo uma releitura criativa. A partir de hoje, vou postar alguns artigos curtos com dicas de artistas, fotógrafos e acervos para fazer sua pesquisa.

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