A Modista do Desterro – Pauline Kisner

Arsênico: um monstro verde na moda vitoriana

No dia 20 de novembro de 1861, uma jovem florista de 19 anos, chamada Matilde Scheurer, morria envenenada por arsênico. Embora o obituário da moça trate a morte como “acidental”, os jornais da época aproveitaram a deixa para expor um lado perverso da indústria da moda, que deixava um rastro de envenenamentos e poluição: o uso de compostos derivados do arsênico para fixar corantes.

Matilde trabalhava para um tal monsieur Bergeron em uma oficina de fabricação de flores e folhas artificiais, bem estabelecida no centro de Londres. Suas tarefas incluíam dar vida às folhas fabricadas, cobrindo-as com um pó verde, que impregnava suas mãos e o ar que ela respirava. O corante brilhante lentamente se acumulou no organismo de Matilde, levando a uma morte tenebrosa, descrita em detalhes nas reportagens dos jornais da época. Os relatos dão conta de que ela vomitava um líquido verde e que o branco de seus olhos e unhas haviam adquirido a mesma cor. Matilde morreu em meio a convulsões. A autópsia mais tarde revelou que o arsênico havia comprometido completamente seu estômago, fígado e pulmões. Nos registros médicos constava que a florista caíra doente pelo menos quatro vezes nos dezoito meses anteriores à sua morte, sempre com sintomas de intoxicação por arsênico.

Os sinais da intoxicação por arsênico eram facilmente percebidos nas mãos de quem lidava com os corantes venenosos. Na foto, ilustração de 1859 de um tratado francês sobre venenos. Cortesia da Wellcome Library, Londres.

Infelizmente, Matilde Scheurer não foi a primeira, nem a última vítima dos perigos do arsênico. Diferentes tonalidades de verde e roxo, ambos usando compostos à base de arsênico, cobre e chumbo como fixador, foram extremamente populares ao longo da Era Vitoriana. Usadas em roupas, acessórios, sapatos e até na decoração das casas, essas cores movimentavam uma próspera indústria, que empregava mulheres jovens e pobres em oficinas sem qualquer estrutura ou proteção contra os químicos. Não é de se estranhar que o patrão de Matilde jamais tenha sido responsabilizado pela morte dela.

O verde esmeralda de Scheele

Em 1775, o farmacêutico suíço Carl Wilhelm Scheele criou um pigmento verde de altíssima fixação, que até o fim do século 18 substituiria todos os outros. Sua formulação inovadora, porém, escondia um risco direto à saúde, pois o aspecto vibrante e a durabilidade do pigmento vinham da combinação de arsênico e sulfato de cobre. Em função de sua composição, o chamado “Verde Scheele” tendia a escurecer com o passar do tempo,o que não impediu a disseminação da tintura na arte, na decoração e na indumentária.

Antes de Scheele, o verde nunca foi uma cor particularmente popular, devido à dificuldade de obter e manter a cor. Os corantes naturais, à base de folhas e raízes, tinham baixíssima fixação. Os poucos exemplos de vestidos verdes que temos anteriores ao século 19 foram tingidos a partir de uma técnica que exigia dois banhos de tingimento, um azul e outro amarelo. Era uma técnica cara e pouco acessível.

Um exemplo de seda adamascada de fabricação inglesa em um traje de 1775 da coleção do MetMuseum. Peças nessa tonalidade são raras para o século 18.

O Verde Scheele era largamente utilizado em papéis de parede, cortinas, velas, almofadas, flores artificiais, roupas e até como corante alimentício. Entre os trabalhadores que produziam essas peças, e também entre artistas, os envenenamentos por arsênico eram comuns e envolviam sintomas como tontura (alguns pesquisadores defendem que a figura icônica da mocinha vitoriana que desmaia possa ter nascido dos desmaios provocados pelo arsênico dos papéis de parede), perda do apetite, náuseas, diarreia, dores de cabeça, irritabilidade, convulsões e coma. O contato com arsênico também está ligado ao desenvolvimento de tumores malignos e queimaduras nas vias áreas e na pele.

Papel da parede inglês, primeira metade do século 19, usando o infame verde esmeralda. Acervo do Victoria & Albert Museum (VAM)

A primeira modificação à fórmula original de Scheele foi feita em 1814, por dois farmacêuticos alemães, que rebatizaram o pigmento como “verde esmeralda”. Mais barato que o verde Scheele, logo caiu nas graças da indústria têxtil inglesa e passou a ser usado indiscriminadamente no tingimento de algodão. Além disso, era usado também na produção de vidro e cristal (inclusive os de uso doméstico, criando mais uma via de envenenamento), no tingimento de couros, na fabricação de sabão, na pintura de brinquedos, para colorir fogos de artifício e até na fórmula de venenos contra rato.

Vítimas da moda?

Devido ao seu baixo custo de produção, o verde esmeralda e suas variações conquistaram um grande espaço na indústria de moda e beleza. Especialmente a partir de 1850, quando as cores brilhantes ganham força na paleta das roupas femininas, o verde aparece como “cor da moda” em várias publicações, o que nos leva a um questionamento: as pessoas não tinham conhecimento dos efeitos do arsênico ou não sabiam que estavam sendo envenenadas?

Duas cores incrivelmente populares da Era Vitoriana. Esta ilustração original da década de 1860 pertence a uma coleção privada e os testes indicaram uso de arsênico tanto na tinta lilás quanto na verde.

Somente recentemente este tema tem sido estudado por alguns pesquisadores, embora instituições como o Victoria & Albert Museum (Inglaterra), Bata Shoe Museum (Canadá) e até o museu do Instituto de Tecnologia de Moda (EUA) tenham em seus acervos peças têxteis que testaram positivo para arsênico. A sobrevivência de tantas evidências do uso indiscriminado desse tipo de pigmento no século 19 levanta várias questões e nos leva a pensar em quem eram, de fato, as vítimas da moda na Era Vitoriana.

Havia toda uma indústria da moda que atendia às demandas da classe média, da elite industrial e da nobreza no século 19. Indústria essa que se apoiava em um verdadeiro exército de artesãs pobres (porque o trabalho da moda era essencialmente feminino!), muitas delas analfabetas, que trabalhavam em condições absolutamente insalubres e desumanas. Eram estas artesãs que debruçavam-se por 14h diárias nos chapéus, tiaras, rendas e sapatos que nós adoramos namorar em fotos na internet. Isso sem mencionar ainda as lavadeiras, passadeiras e criadas de quarto, que lidavam com químicos pesados para garantir a limpeza e conservação dessas peças. Muitas delas ainda mais jovens do que a florista Matilde Scheurer.

A loja em que Matilde trabalhava fabricava flores artificiais, do tipo que eram usadas para adornar vestidos e criar as populares tiaras de baile florais dos anos 1850 e 1860. As flores feitas de papel tinham uma concentração de arsênico e chumbo ainda maior que as de tecido!

Tiara francesa dos anos 1850. Modelos com folhas, flores e frutos eram muito populares como adereço de baile na metade do século 19. Provavelmente Matilde Scheurer tenha ajudado a produzir vários modelos como este.
Acervo do Museu de Belas Artes de Boston.

Sapatos e meias também eram tingidos de verde esmeralda. No caso das meias, por estarem em contato direto com o corpo, a quantidade de arsênico absorvida pela pele era consideravelmente maior.

Botas femininas dos anos 1840, parte da coleção do Bata Shoe Museum.

E, claro, os vestidos. Essa belezinha aí embaixo pertence à coleção têxtil da Universidade Ryerson, no Canadá. É uma peça do início do fim dos anos 1860s:

O arsênico fora do armário

É muito difícil testar todos os vestidos verdes em coleções de museus mundo afora, de modo que é impossível afirmar que todo verde da era vitoriana tinha arsênico em sua composição. As concentrações até hoje encontradas em roupas não são suficientes para justificar uma intoxicação grave nas usuárias dos trajes. No entanto, o arsênico podia chegar o corpo de outras maneiras.

Os papéis de parede que utilizavam esses pigmentos liberavam resíduos no ar, que eram inalados e afetavam os pulmões e vias aéreas superiores. Os papéis tratados com arsênico eram especialmente valorizados pelas suas propriedade inseticidas – só que os insetos não eram os únicos envenenados por aqui.

Cosméticos usavam arsênico em pequenas porções, em quantidades que são processadas e eliminadas pelo corpo em alguns dias. Cremes para o rosto, especialmente, levavam arsênico e chumbo com a promessa de manter a pele clara e lisa!

O trióxido de arsênio  era amplamente usado como remédio, em especial no tratamento de tumores (ainda hoje é usado contra alguns tipos de leucemia, em doses mega controladas). Na forma de sal, ele é branco e inodoro e pode ser confundido com açúcar ou sal. Foi o que aconteceu no Caso Bradford (1858) que citei no começo do artigo: em uma loja de doces, o trióxido de arsênio foi confundido com açúcar em uma receita, levando à morte de 21 pessoas e a mais de 200 intoxicações em diferentes níveis de gravidade. O Caso Bradford se tornou possível devido à baixa fiscalização em torno da comercialização de arsênico, que basicamente podia ser comprado em qualquer farmácia ou botica e por qualquer pessoa, apesar de leis que previam sua venda apenas para indústrias e farmacêuticos.

Algumas questões finais

Eu sempre digo que é preciso entender que História da Moda não é apenas diferenciar os estilos, silhuetas e materiais de cada época. Por trás dos vestidos magníficos que povoam nossa imaginação e contas no Pinterest, existem histórias de vida, relações de poder e de produção. A moda dos séculos passados é linda, como seus detalhes únicos e toda feita sob medida, mas ela é resultado de contextos econômicos e sociais muito mais amplos do que “a roupa dos nobres” e “a roupa dos plebeus”.

Numa época em que a indústria da moda começa a dar sinais de estar olhando para dentro de si mesma, e de questionar a ética da produção e da comercialização, histórias como as de Matilde Scheurer e de tantos outros trabalhadores anônimos da moda estão aí para nos lembrar sempre de perguntar: “quem produz a minha roupa?”.

Para saber mais

DAVID, Alisson Mathews. Fashion Victims: The Dangers of Dress Past and Present.


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