Entre 1816 e 1834, o pintor francês Jean-Baptiste Debret percorreu o Brasil, retratando sua paisagem e seus habitantes. Debret era dono de um olhar muito curioso e se ocupou de registrar informações visuais e escritas sobre indígenas, negros (libertos ou cativos) e brancos de diferentes grupos da sociedade. Por isso, o resultado da aventura de Debret, “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, publicado em Paris em 1835, é uma leitura indispensável para quem deseja conhecer essa época da nossa história.
A imagem que abre esse post é justamente a prancha (ilustração) de nº 7 do volume II dessa obra. Como Debret não se contentava apenas em pintar, cada aquarela do livro é acompanhada por uma explicação detalhada da cena e dos costumes brasileiros:
“No Rio, como em todas as outras cidades do Brasil, é costume, durante o tête-à-tête(*) de um jantar conjugal, que o marido se ocupe silenciosamente com seus negócios e a mulher se distraia com os negrinhos que substituem os doguezinhos, hoje quase completamente desaparecidos na Europa. Esses molecotes mimados até a idade de cinco ou seis anos, são em seguida entregues à tirania dos outros escravos que os domam a chicotadas e os habituam assim a compartilhar com eles das fadigas e dissabores do trabalho. Essas pobres crianças revoltadas por não mais receberem das mãos carinhosas de suas donas manjares suculentos e doces, procuram compensar a falta roubando as frutas do jardim ou disputando aos animais domésticos os restos de comida que sua gulodice, repentinamente contrariada, leva a saborear com verdadeira sofreguidão. (DEBRET, 1835)”
(*)tête-à-tête é uma expressão francesa para descrever qualquer refeição ou reunião em que apenas duas pessoas estejam presentes frente a frente.
E o que uma família rica o suficiente para ter tantos escravos comeria nesse jantar? De acordo com Debret, a refeição começava com uma sopa chamada “caldo de substância”, ou um consommé, para usar o termo moderno. Debret descreve a receita como “(…)um enorme pedaço de vaca, salsichas, tomates, toucinho, couves, imensos rabanetes brancos com suas folhas, chamados impropriamente nabos etc., tudo bem cozido”. Embora eu *ainda* não tenha encontrado essa receita nos dois livros de culinária mais populares da época (que de populares mesmo não tinham nada, pois focavam a mesa real), encontramos algo muito parecido em “O Cozinheiro Imperial”, editado em 1840:
“Guarneção o fundo de uma cassarola de pranchas delgadas de toucinho, quatro cebôlas em rodas, quatro ou seis arrateis de carne de vacca da perna feita em pranchas, e batidas entre pannos com a cutela; depois d’esta arrumada, deitem-lhe algumas raizes de cenouras, e panacios cortados em bocados, e ponha-se a seccar em lume brando; em tendo largado a substancia, deitem-lhes meia colher de caldo, deixe-se pegar levemente, e com sentido, que não saiba a queimada; estando pegado, como é necessario, deite-se-lhe de caldo a quantidade necessaria, deixem ferver pouco e pouco, e escume-se; estando cozida a carne, passe-se o caldo por um peneiro, deixe-se descançar em uma tigella, e estando claro, sirva-se d’elle para o que fôr conveniente“(Cozinheiro Imperial, 1840,p.13)
No momento de levar o caldo à mesa, acrescentavam-se ainda folhas de hortelã. Com o caldo de substância ainda era servido um cozido de carnes e legumes e um pirão escaldado de farinha de mandioca, que substituía o pão, largamente consumido com sopas na Europa desde a Idade Média.
Na refeição que Debret tomou parte, o prato principal era a galinha com arroz, prato que o francês considerou meio sem graça. Novamente, vou recorrear ao Cozinheiro Imperial para tentar uma aproximação da receita:
“Peguem em um ou dois arrateis de arroz, e depois de bem lavado e enchuto, ponha-se a cozer em caldo feito com vacca, gallinhas, prezunto, e um bocado de toucinho magro, raizes e cebôla cravejada; cozido o arroz, e meio frio, deite-se em uma cassarola com gemmas de ovos, quejo Parmezão ralado, e uma pouca de noz moscada; misture-se tudo e, depois de frio, fação uma borda , da altura de dois dedos, no prato que ha de servir, cubrão-lhe o fundo com um pouco do mesmo arroz, e ponhão-lhe em cima as gallinhas inteiras ou em quartos, cozidas em uma bréza, com uma colher de boa esséncia, ligada, cubrão-se com o resto de arroz, e por cima deste pão, e queijo ralado; pingue-se depois de manteiga de vacca, e metta-se a cozer no forno; em estando córados, escorra-se-lhes a gordura, e sirvão-se quentes.” (Cozinheiro Imperial, 1840, p.88)
A galinha com arroz era acompanhada com verduras cozidas e fortemente temperadas com pimenta e ao lado desses pratos “uma resplendente pirâmide de laranjas perfumadas” (DEBRET, 1835), que eram cortadas em quatro e distribuídas entre os comensais para aliviar o ardor da pimenta. O pintor-cronista ainda acrescente que seus anfitriões tinham o mau hábito de, junto com a galinha, servir um molho feito com pimenta malagueta esmagada com vinagre. Haja boca para tudo isso, 100or!
Debret ainda descreve uma “salada inteiramente recoberta de enormes fatias de cebola crua e de azeitonas escuras e rançosas”. Para finalizar, as sobremesas: frutas da terra (maracujá, abacaxi, melancia, manga, pitanga, jabuticaba…), queijo de Minas e “doce-de-arroz frio, excessivamente salpicado de canela”, cujo preparo era provavelmente o mesmo que aparece na “Arte da Cozinha”:
“Enteze-se em agoa um arratal de arroz, e depois coza-se com huma canada de leite, e hum arratel de açucar, e agoa de flor; como estiver cozido mande-se á meza com canella por cima” (RODRIGUES, Domingos. Arte de Cozinha, p. 118)
Publicado pela primeira vez em 1683, “Arte de Cozinha” foi o primeiro best-seller de culinária em língua portuguesa. Assinado por Domingos Rodrigues, então cozinheiro do rei, o livro foi reimpresso vários vezes até o século XIX e, diz-se, estava na bagagem da Família Real Portuguesa em sua fuga transferência para o Brasil em 1808. As receitas, definitivamente, tinham bem o gosto da elite portuguesa.
Além da água, que era servida à vontade para todos, bebia-se também vinho Madeira e vinho do Porto. No final da refeição, já era costume beber café, era considerado uma bebida que facilitava a digestão.
REFERÊNCIAS
“Voyage pittoresque et historique au Brésil” (Jean-Baptiste Debret, publicado originalmente em 1835).
“Arte de Cozinha” (1ª ed. em 1638)
“Cozinheiro Imperial” (1840)
Também indico muito a leitura desse excelente artigo de Joana Monteleone sobre os livros de culinária em língua portuguesa.
Mas como o século 18 adorava fazer “releituras” das chamadas “modas exóticas” (Oriente Distante, Oriente Próximo), não duvido que haja realmente alguma influência da indumentária crioula sobre a Chemise a la Reine.
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