O luto vitoriano é um tema frequente e que chama muito a atenção. De um lado, nós somos íntimos da figura da viúva vitoriana graças à imagem que foi criada dela no cinema de terror; de outro, ela é completamente desconhecida e fora da nossa realidade, na qual a morte acontece longe dos nossos olhos e não existem mais símbolos públicos de luto.
Por mais fascinante que o tema do luto vitoriano possa ser, precisamos lembrar que ele tem um pé na tragédia, acima de tudo. A Era Vitoriana era assolada por uma infinidade de doenças, a despeito de todos os progressos científicos e medicamentos de então. As doenças eram particularmente cruéis com as crianças, idosos e com a população pobre de uma forma geral. A fome abria espaço para que outras doenças se instalasse e as péssimas condições de higiene e de trabalho à que a população pobre era submetida só tornava esse cenário ainda pior. Não que as taxas de mortalidade fossem tão pequenas assim entre os mais abastados. A mortalidade infantil em especial era alta e a falta de antibióticos fazia com que ferimentos e pneumonias fossem particularmente fatais, além das diarreias causadas pela contaminação da água e dos alimentos. Morria-se jovem e com frequência maior do que nos dias atuais. Assim, não era raro que uma viúva ainda estivesse chorando pelo marido e precisasse vestir o luto pelos filhos.
Estar de luto não era apenas uma questão de vestir os chamados “trajes de dó” ou “trajes de nojo”. Como tudo na época, o luto vitoriano estava submetido a uma série de regras de etiqueta, mais estritas à medida em que se subia na escada social. De uma forma geral, a estrutura do luto era muito mais feminina do que masculina, algo que podemos entender quando observamos o pensamento da época. Na Era Vitoriana se estabeleceu de vez a ideia de que as mulheres são flores femininas e delicadas, dominadas pelas suas emoções e extremamente voláteis; em oposição aos homens, racionais, a esfera da mulher era o lar e as coisas delicadas e amorosas relativas à vida doméstica. Por isso era delas que se esperava as maiores manifestações emotivas pela perda de um ente querido, especialmente o marido ou os filhos.
O luto vitoriano era dividido em etapas, que levavam em consideração o grau de parentesco da mulher com o falecido e o tempo que se passava desde a morte. E embora seja tentador pensar que todas as mulheres cumpriam à risca esse costume, os manuais de etiqueta e até os artigos de jornal que tratam sobre o assunto acabam apontando em outra direção. A crítica às mulheres que não respeitavam o tempo de luto era constante, o que pode levar a crer que, num tempo de casamentos de conveniência, nem todas elas lastimavam tanto assim a morte dos maridos, tinham condições financeiras de cumprir o luto ou disposição para isso!
Mas vamos às fases ideais do luto:
Luto pesado
O luto pesado ou luto profundo era a primeira fase do luto vitoriano, quando fazia-se necessário um certo recolhimento para que os familiares lidassem com a partida de um ente querido. Para as mulheres, isso significava que nenhuma outra cor além do preto mais profundo deveria ser visto em nossos corpos. Somente a roupa íntima poderia ser mantida em cores claras, pois não era considerado adequado deitar-se em trajes de luto, pela crença de que isso poderia atrair a Morte para dentro de casa. Encontrei essa crença em fontes da época não só europeias, mas brasileiras também.
Todos os tecidos para esta fase do luto deveriam ser lisos, foscos e simples. Sarja, bombazina, alpaca, merinó e os crepes eram escolhas aceitáveis. No inverno, as peles escuras também poderiam ser utilizadas com moderação. As jóias eram abolidas do traje feminino, à exceção dos broches de gola, presilhas de cabelo e alfinetes de chapéu, que deveriam ser confeccionados em azeviche, uma pedra negra que não apresenta brilho algum. Além disso, o véu negro era obrigatório. Se usasse sombrinha ou luvas, também deveriam ser pretos.
Muito embora o costume do século 19 fosse o de tratar os doentes em casa, e de haver uma certa preparação da família e da pessoa para a morte, nem sempre o luto podia ser planejado com antecedência. Mortes inesperadas significavam que a família precisava, muitas vezes, improvisar. Uma das estratégias era tingir os vestidos que a mulher já tivesse, serviço que era, inclusive, oferecido por profissionais e anunciado em jornais. Esse anúncio de 1870 do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, é um exemplo:
Os tecidos especiais para luto também eram anunciados nos jornais como uma mercadoria específica. Infelizmente, eu não tenho uma tabela de conversões que permita fazer uma aproximação de valores dos dias de hoje:
Especialmente no caso das viúvas, esperava-se da mulher grande decência e recolhimento nesse momento. Guardiã da honra e da memória do marido falecido junto à família e à sociedade, ela deveria se comportar com sobriedade, evitando eventos sociais como bailes e jantares e preferindo os ofícios religiosos e pequenas reuniões familiares. Mesmo nesses eventos esperava-se da viúva dignidade e desprendimento da vida mundana, já que ela deveria se abster de perfumes e de penteados elaborados, além de decorações na roupa, como babados, rendas ou laços.
A depender da idade, esperava-se que a viúva permanecesse ao menos dois anos e meio de luto no total; as mais velhas deveriam manter a fase final do luto pelo resto da vida. As demais envergavam o luto profundo por todo o primeiro ano da viuvez, o luto ordinário por nove meses e o luto aliviado, por três meses.
Habilmente preservado no Museu Metropolitano de Nova York, Estados Unidos.
Luto ordinário
Seguia-se então o segundo estágio do luto vitoriano, em que os trajes negros começavam a receber alguns sinais de cor lá e cá, com o branco aparecendo nos punhos, colarinhos e mangas falsas. Nessa fase do luto, a viúva já podia escolher entre deixar o véu cair sobre o rosto ou usá-lo para trás, sobre o chapéu e caído nas costas e ombros.
Um detalhe bem curioso da Era Vitoriana eram as noivas-viúvas. Numa época em que havia poucas possibilidades de independência e sobrevivência feminina fora do casamento, a viuvez podia significar a ruína financeira da mulher. Não tendo como sobreviver apenas de seu próprio trabalho, muitas viúvas jovens e com filhos pequenos casavam-se assim que chegavam ao luto ordinário. Retiravam os trajes de luto somente para o casamento e retornavam a eles logo após as núpcias. Assim, estavam casadas com um segundo marido, mas ainda chorando o primeiro.
O luto ordinário deveria durar cerca de nove meses para as viúvas jovens e acompanhar as viúvas mais velhas por toda a vida.
Aqui já se permitia outra vez o uso das jóias, desde que fossem feitas em azeviche. Era aceitável que a viúva ostentasse alguma peça que contivesse ou fosse feita dos cabelos do marido, colhidos pelo agente funerário antes do sepultamento. Chamavam a estas jóias mementos ou jóias de sentimento e falaremos sobre elas em breve.
Talvez você já tenha se deparado com fotos de noivas vestidas de preto, mas isso não necessariamente significa que elas estavam de luto. Nas colônias alemãs aqui de Santa Catarina se registrava esse costume no século 19, que era uma tradição trazida da Pomerânia e que não tinha nada a ver com luto. Aliás, nesse link você encontra um ótimo artigo sobre o tema.
Luto aliviado
O luto aliviado ou meio-luto correspondia aos três meses finais do luto vitoriano, quando o crepe era então abolido, dando lugar às sedas, veludos e rendas negras. Outras nuances retornavam lentamente ao traje feminino acompanhando o preto: tons de lilás, violeta e cinza, além de bordados sutis em prata e dourado, podiam ser incorporados aos vestidos sem prejuízo à moral de quem os usasse.
E o luto masculino?
Para os cavalheiros, o luto não trazia lá grandes mudanças no traje. Já habituados que estavam eles às cores mais escuras, adicionavam ao traje cotidiano um par de luvas negras e gravatas pretas. Entre os populares, que raramente dispunham das lustrosas casacas negras dos cavalheiros mais abastados, utilizava-se o fumo, uma braçadeira de crepe preto presa no braço esquerdo, sobre a camisa ou casaco. Havia também o costume de que o homem de luto por um parente de primeiro grau não cortasse a barba durante todo o primeiro período do luto. Tanto o uso do fumo quanto o hábito de deixar crescer a barba eram inaceitáveis na sociedade elegante, sendo próprios do homem comum, jamais do cavalheiro.
Não era comum que as crianças, especialmente as muito pequenas ou de famílias humildes, vestissem os trajes negros. Com as crianças de colo usava-se o fumo e também laços de fita de crepe negro presos aos ombros, gola, punho e cintura. À medida em que os pequenos cresciam, quando chegavam eles a crescer, passavam a acompanhar o luto da família.
Quanto tempo durava o Luto Vitoriano?
Luto pelo esposo: no mínimo dois anos. Numa versão idealizada, a viúva jamais tiraria o luto.
Luto pela esposa: entre um ano e um ano e meio, a critério do viúvo.
Luto por um irmão, pelos pais ou pelos filhos: seis meses.
Luto por parentes de segundo grau: até três meses
Luto pelos governantes: eram determinados pelo próprio governo. No caso das monarquias, o luto da Corte acompanhava o tempo de luto dos reis e rainhas, sendo estendido às repartições públicas.
Luto por um noivo(a): não era considerado necessário, mas o luto aliviado poderia ser usado por um ou dois meses.
Esses períodos não eram fechados em si. Eles variavam de acordo com o grau de sentimento de perda causado pela morte da pessoa.
Todo vestido vitoriano preto é de luto?
Nope. O preto era uma cor utilizada em várias outras situações fora do luto e considerada até bastante fashion na Era Vitoriana. O que marca o vestido preto de luto são duas características fundamentais: a) tecidos absolutamente foscos; b) nenhuma decoração ou decorações pretas muito discretas. E decorações discretas são exatamente o oposto dos vestidos vitorianos tradicionais, hahahahaa
Nós sabemos que o preto era usado fora do luto vitoriano graças às publicações de moda da época. Esse modelo publicado em 1863 na Godey’s Ladies’ Magazine é descrito como um vestido de lã de alpaca preta, decorada com botões e fitas de veludo creme. Definitivamente não é um vestido de luto:
Um outro exemplo é este vestido de jantar, que a mesma Godey’s aconselha que seja feito em popeline preta, decorada com fitas de seda lilás e veludo preto. Novamente, nenhuma indicação de que seja usado para luto, devido ao tipo de decoração:
Se você estiver em dúvida se o vestido retratado em um quadro é de luto ou não, observe os acessórios. Esse retrato de 1861 da bela Maria Sawiczewska nos dá um ótimo exemplo: o vestido é preto, mas as jóias que ela usa são feitas de coral, algo impensável para uma mulher de luto:
FONTES
Na hora de enviar o artigo, acabei esquecendo de incluir alguma coisa sobre as fontes, então vamos lá.
Os costumes de luto sobre os quais falamos aqui são essencialmente europeus, majoritariamente ingleses e franceses. Em qualquer país onde houvesse uma elite que aspirava a ser considerada “civilizada”, imitar costumes ingleses e franceses era regra. À medida em que novas famílias chegavam à elite, fosse através de títulos de nobreza dados/comprados ou enriquecimento através da indústria/comércio, rolava uma pressão para que essas pessoas dominassem os códigos de etiqueta que regiam a vida social. Como a gente fala por aqui com frequência, a etiqueta era uma régua que media o grau de adequação da pessoa ao ambiente onde ela circulava, e essa régua era usada também (ou principalmente!) para desqualificar as pessoas que não dominavam essas regras. Foi para atender à necessidade dos recém-chegados que os manuais de civilidade passaram a ser publicados aos montes no século 19.
Meus manuais de etiqueta preferidos para pesquisa sobre Era Vitoriana são:
INGLATERRA: “The Ladies’ Book of Etiquete and Politeness” (1ª edição de 1860 e republicado várias vezes ao longo do século, devido à alta demanda) | LINK
ESTADOS UNIDOS: “Our Deportment: or, The Manners Conduct, and Dress of the Most Refined Society” (1880) | LINK
PORTUGAL/BRASIL:
- “Código do bom-tom: ou regras da civilidade e de bem viver no século XIX” (publicado em Portugal em 1845 e o queridinho do Brasil no Segundo Reinado) | LINK
- “Novo Manual do Bom Tom” (publicado no Brasil em 1859, a partir de tradução de livros franceses) | LINK
Mas todos esses livros nos dizem respeito aos costumes da elite. E como o restante da população vivia o luto? Para descobrir isso, precisamos nos apoiar em outras fontes. No caso da Inglaterra, cartas e diários deixados pelas pessoas comuns são ótimas fontes para isso, principalmente porque nos fornecem descrições dadas pelos próprios sujeitos. No Brasil, isso vai ser um pouquinho mais complicado: para o século 19, frequentemente usamos os relatos dos viajantes europeus que passaram por aqui, já que eles aparentemente achavam os costumes funerários e de luto das camadas populares pitorescos e incomuns. A lista de viajantes é imensa e nem todos eles nos fornecem descrições detalhadas. Aconselho você a começar primeiro por algumas leituras que analisam esse tipo de fonte, já que estamos falando de descrições feitas por terceiros e com um olhar essencialmente europeu.
Existe um livro maravilhoso que eu indico a todos que têm curiosidade sobre rituais fúnebres e costumes de luto no Brasil: “A Morte é uma Festa“, de João José Reis.
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