Na Era Vitoriana (1837-1900) e não apenas na Inglaterra, o jantar era a refeição mais formal do dia e, por isso mesmo, uma ocasião com grande potencial: um bom jantar era um evento que podia reforçar ou criar novos laços políticos e sociais, enquanto um vexame poderia significar a ruína e isolamento. Sendo tão importante, é compreensível porque o jantar vitoriano requeria tanta preparação e cuidados de etiqueta tanto dos anfitriões, quanto dos convidados. No artigo de hoje, você aprenderá a organizar o perfeito jantar vitoriano, com detalhes sobre etiqueta e até um menu completo no final para você se inspirar. Vamos lá?
Quem convidar?
De acordo com o “The Ladies’ Book of Etiquette”, publicado em 1860 e um dos principais manuais de etiqueta da metade do XIX, a responsabilidade de organizar um jantar, mesmo que apenas para amigos e conhecidos do marido, recaía sobre a dona da casa. Como anfitriã, ela tinha uma série de tarefas pela frente, que começavam com a escolha dos convidados.
Em um jantar, a refeição era um fator de segunda importância. Claro que era necessário garantir uma refeição agradável, com sabores harmonizados e apresentação cuidadosa, mas a boa conversação era um ingrediente que, se estivesse ausente, poderia pôr a perder o mais suntuoso dos banquetes. Os vitorianos davam tanto valor à arte da conversação que os manuais de etiqueta costumavam ter capítulos específicos com conselhos a esse respeito, instruindo os leitores não só a se inteirar sobre os diversos assuntos do momento, mas a desenvolver a boa oratória e a sensibilidade de saber quando mudar ou evitar um determinado tópico.
Ao selecionar os convidados, a anfitriã deveria ter em mente a necessidade de garantir uma boa conversação, escolhendo pessoas com interesses em comum. Em caso de jantares mistos, a boa educação ditava que fossem convidados homens e mulheres em mesmo número. Tão logo essa lista fosse decidida, a anfitriã deveria enviar os convites, com antecedência entre uma semana a dez dias. O “The Ladies’ Book of Etiquette” aconselhava as leitoras a não enviarem os convites pelo correio, tanto pelo risco de não serem entregues quanto por uma questão de cortesia. Para entregá-los, deveria ser usado um empregado da casa ou um mensageiro contratado. O convite deveria conter o nome do casal de anfitriões, mesmo que apenas os contatos do marido fossem convidados.
Um modelo de convite sugerido por Isabella Beeton no seu “Book of Household Management” é bem simples e direto:
“Sr e Sra. Fulano de Tal apresentam seus cumprimentos ao Sr. e Sra. Ciclano de Tal e requerem a honra (ou prazer) de suas companhias para o jantar na quarta-feira, dia tal“, seguido pelo endereço dos anfitriões e pela siga R.S.V.P (répondez s’il vous plaît), uma convenção da língua francesa que obrigava o convidado a responder por escrito, tanto em caso de confirmação quanto de renúncia ao convite.
Era a partir das confirmações de convidados que a dama da casa iniciaria uma das tarefas mais complexas do perfeito jantar vitoriano: organizar a distribuição dos convidados na mesa. Isso requeria um conhecimento profundo da anfitriã sobre os gostos e personalidade de seus convivas. Colocar uma pessoa tímida e outra faladora lado-a-lado, ou um bon-vivant e uma matrona super religiosa, certamente seria um desastre e algo a ser sempre evitado!
Recebendo os convidados
Atrasos eram muito mal vistos na Era Vitoriana. Os manuais de etiqueta da época aconselhavam que a anfitriã estivesse completamente pronta à espera dos convidados com 30min de antecedência. Os convidados, por sua vez, deveriam começar a chegar com 15min de antecedência.
A recepção aos convidados era feita na sala de visitas (drawing room), um espaço com sofá e cadeiras, algumas sem braços (para as damas) e outras com braços (para os cavalheiros). Cada convidado que chegasse à casa era recebido e anunciado pelo mordomo, que conduzia a pessoa até a sala de visitas. Aqui é que nossa dama precisava brilhar: o segundo ingrediente para o perfeito jantar vitoriano era a capacidade dos anfitriões de manter todo o grupo conversando alegremente e com os ânimos elevados.
Cabia também ao mordomo anunciar o jantar. O dono da casa tomaria o braço da convidada de status mais elevado (título de nobreza ou fortuna), da mais velha presente, de uma dama que merecesse algum tipo de homenagem ou até mesmo de uma recém-chegada que tivesse poucos conhecidos naquele grupo. Se esta dama fosse casada, o marido dela tomaria o braço da anfitriã do jantar e sentaria sempre à sua direita na mesa. Aos pares, o resto do grupo seguia para o salão de jantar.
Quem serve o jantar?
Uma família de respeito não permitiria a presença das criadas na sala de jantar e teria uniformes específicos para os lacaios usarem. Este uniforme era chamado de libré e tinha um pezinho lá no século 18. No começo da Era Vitoriana, ele tinha basicamente as mesmas linhas do século anterior, mas com o passar do tempo foi se tornando mais simples. E quem assistiu Downton Abbey tem uma noção de como a posição do lacaio era importante dentro da casa; liberdades artísticas à parte, os lacaios tinham uma posição privilegiada na hierarquia dos criados e um papel muito importante no jantar vitoriano.
Como via de regra, quanto mais rica a família, mais lacaios ela teria e mais vistosas seriam suas librés!
O jantar poderia ser servido de duas formas. Havia o service a la française,em que a comida era colocada toda de uma vez só na mesa, numa demonstração óbvia de riqueza e luxo. Os lacaios se limitavam a servir as bebidas, trocar os talheres e auxiliar no corte das carnes de caça. O grande problema é que a comida esfriava e isso levou a uma mudança no modo de servir. No século 19, introduziu-se na Inglaterra o service a la russe,em que os pratos eram apresentados em sequências divididas em courses ou serviços. No caso do service a la russe, todos os talheres já estão dispostos na mesa para cada convidado, na sequência exata em que os pratos serão servidos. O papel dos lacaios é levar cada iguaria até o convidado para que ele próprio se sirva. Detalhe: o lacaio sempre deveria se apresentar pela esquerda do convidado para servir e pela sua direita para retirar o prato, que é trocado a cada novo course.
Um pequeno detalhe técnico: o que se chama de service a la russe hoje não é a mesma forma que se utilizava no jantar vitoriano. O serviço moderno mais próximo do modelo vitoriano é o serviço inglês direto.
A mesa do jantar vitoriano
Era comum que a mesa do jantar vitoriano já tivesse os lugares marcados, pensando na questão da organização do grupo por interesses, como já falamos ali em cima.
A toalha branca era uma regra, que lembrava não só a questão do asseio, mas também a riqueza da família. Como parte da preparação para o jantar, os criados já providenciavam a limpeza e polimento de todos os talheres, pratos e cristais necessários, para que tudo estivesse perfeito no momento do jantar.
Por cima da toalha branca, eram quase obrigatórias as flores, em arranjos delicados combinando com a decoração do ambiente. Os arranjos deveriam ser feitos com flores frescas (as artificiais se restringiam aos chapéus e eram muito mal vistas como decoração!) e de forma a não atrapalhar a conversação ao esconder o rosto dos convidados em volta da mesa.
No momento do jantar, os anfitriões ocuparam as cabeceiras da mesa, tendo à sua direita o par com que haviam saído da sala de visitas. Era costume intercalar homens e mulheres na mesa e separar os casais, para promover uma conversação mais alegre. As mulheres sempre eram as primeiras a sentar, com o auxílio dos homens. Uma dama bem preparada traria consigo uma pequena bolsa com um guardanapo de linho, que seria alfinetado à saia para evitar que qualquer acidente manchasse seu precioso vestido de jantar.
A disposição apropriada de talheres e copos podia variar bastante de acordo com a região, mas vamos ficar com o modelo mais basiquinho sugerido pela Isabella Beeton. Lembrando que, em caso de frutos do mar, seriam acrescentados mais talheres especiais!
2 – Prato de Pão
3 – Colher de sobremesa
4 – Garfo de sobremesa
5- Taça de água
6 – Taça de vinho
7 – Guardanapo
8 – Garfo de Salada
9 – Garfo de Mesa
10 – Prato principal
11 – Faca de jantar
12 – Colher de Sopa
O que servir?
O cardápio do jantar dependeria muito das condições financeiras da família. Os best-sellers de culinária da época, como o “Mrs. Beeton’s Book of Household Management” (1861), traziam sugestões de cardápio de acordo com a época do ano e número de convidados. Além disso, as publicações do gênero traziam as receitas de tais cardápios e conselhos para substituição de ingredientes, levando em consideração as condições financeiras e a sazonalidade.
De forma geral, um jantar vitoriano deveria ser formado por entradas + três courses ou serviços + sobremesa, com uma lógica um pouco diferente da que é aplicada aos jantares de hoje. Para um jantar de 10 convidados no mês de janeiro, Isabella Beeton sugere um cardápio com muitos elementos:
1 – Entradas: Peitos de vitela; Ave ao curry com arroz cozido.
2 – Primeiro Serviço: Sopa à la Reine; Badejo gratinado; Bacalhau crocante com molho de ostras.
3 – Segundo Serviço: Peru recheado com castanhas e molho de castanhas; Pernil de carneiro cozido à Inglesa, com molho de alcaparras e purê de nabos.
4 – Terceiro Serviço: Galinhola ou Perdiz; Pato selvagem; Charlotte de baunilha; Pudim de Pão; Gelatina de laranja; Manjar branco; Fundos de Alcachofra; Macarrão com queijo parmesão.
5 – Sobremesas e sorvetes
Ao longo de toda a refeição, deveriam ser servidos vinhos harmonizados com os diferentes pratos. Com as sobremesas seriam servidos licores e vinhos licorosos. Após as sobremesas, quando homens e mulheres se retirassem para ambientes separados, o café poderia ser servido. Caso estivesse nos planos dos anfitriões, alguns convidados selecionados poderiam receber um convite extra para uma esticadinha, que poderia envolver música, jogos e até dança.
E como os criados se preparavam para tudo isso?
Para contar esse outro lado da história, vamos precisar um post especial 😉
2 respostas
Adorei a historia, e curiosa pra saber sobre os criados.
Abraços
http://www.glamour2.com
Muito bom, como sempre!
No que se refere aos atrasos, na Inglaterra e Europa em geral, ainda são muito mal vistos, mas, na era dos smartphones, avisar o atraso ameniza a situação. Confirmar e não comparecer, é falta muito grave.