Um sábio disse certa vez que o passado é um lugar bom para se visitar, mas não para viver nele – e a farmácia vitoriana é só mais um ponto a favor disso. Por mais que a gente goste de filmes-séries-livros ambientados na Era Vitoriana, a realidade era muito pior do que qualquer autor/roteirista consegue representar. Sem saneamento ou leis trabalhistas e ambientais, e com algumas ideias bem equivocadas em relação à transmissão de doenças, a Era Vitoriana foi um período complicado: as taxas de mortalidade eram altas (a infantil era a mais alta de todas!), doenças como tuberculose e cólera eram epidemias e a maioria das pessoas não podia se dar ao luxo de pagar uma consulta médica. Numa época em que o controle sobre a produção e venda de medicamentos quase não existia, os remédios eram fabricados com substâncias pra lá de suspeitas e podiam ser comprados com muita facilidade.
Um dos maiores bestsellers do século 19, “The Book Of Household Management” era um super manual de economia doméstica destinado às mulheres de classe média. Republicado várias vezes desde seu lançamento em 1861, o livro trazia uma lista dos itens que não podiam faltar na farmácia doméstica vitoriana. Além de instrumentos como lancetas (para furar bolhas e extrair verrugas), agulhas curvas (para fazer suturas) e fórceps (para auxiliar em partos difíceis), o livro aconselhava a dona de casa vitoriana a manter por perto coisas como ópio em pó e láudano líquido. Também faziam parte dessa lista alguns medicamentos industrializados que faziam muito sucesso no século 19 e é sobre essa bizarra farmácia vitoriana que vamos falar hoje.
A peculiar farmácia vitoriana
A farmácia vitoriana era qualquer coisa menos saudável. Mesmo que a Medicina estivesse começando a se preocupar em testar a eficácia dos medicamentos e controlar sua produção, e em entender as causas das doenças, esse conhecimento levaria algum tempo a chegar para as pessoas comuns. No século 19, muitas teorias antigas sobre saúde, doença e higiene, algumas delas com um pé lá na Idade Média, ainda circulavam. Uma coisa havia mudado de verdade: com o crescimento das cidades, as famílias que saíam do campo se viam obrigadas a abandonar a medicina tradicional, baseada em ervas e raízes, e começar a consumir medicamentos prontos. Isso fazia da farmácia vitoriana um negócio muito lucrativo, mas não necessariamente seguro.
Desde o século 18, substâncias que hoje nós sabemos serem altamente tóxicas acabavam servindo de base não só para cosméticos, mas também para remédios. Enxofre e mercúrio eram usados para tratar DSTs, principalmente a sífilis. O arsênico que fixava os corantes verdes também era usado para tratar úlceras no estômago. Substâncias tóxicas e viciantes como ópio, estricnina, láudano e cocaína eram vendidas livremente nas farmácias, sem qualquer restrição, e estavam presentes em muitos lares vitorianos. Também não havia uma noção muito clara sobre os efeitos do álcool no organismo, então bebidas como rum e conhaque eram frequentemente usadas como “base” para diluir os remédios que eram dados inclusive para as crianças.
Não é que não houvesse outras formas de tratar as doenças, mas grande parte dos tratamentos era simplesmente inacessível para os mais pobres. Num contexto de pobreza e falta de conhecimento sobre o funcionamento do corpo humano, cabia às mulheres da família comprar os remédios para a família ou fabricá-los em casa. E os farmacêuticos e fabricantes de medicamentos sabiam tirar vantagem disso, direcionando quase toda a publicidade para as mulheres. Os anúncios de remédios milagrosos eram publicados em jornais e revistas de grande circulação, muitas vezes acompanhados de ilustrações sedutoras e depoimentos de médicos e celebridades da época atestando a eficácia dos medicamentos. Vamos falar sobre os remédios mais famosos da Era Vitoriana?
Peitoral de Cereja do Dr. Ayer
Um dos primeiros e mais conhecidos xaropes infantis do mundo, o Peitoral de Cereja foi patenteado por um médico americano em 1865. James Cook Ayer dedicou sua vida a um laboratório farmacêutico que produzia todo tipo de medicamento e exportava para diversas partes do mundo, inclusive o Brasil. Um de seus produtos de maior sucesso era o Peitoral de Cereja.
Anunciado como uma “benção para o lar”, o Peitoral do dr. Ayer prometia curar rapidamente todos os tipos de tosses, dores de garganta, asma, bronquite, gripes e resfriados. A fórmula era realmente eficaz contra a tosse, mas graças a um ingrediente narcótico: ópio. Misturado com uma base alcoólica e um sedutor aroma de cereja, o Peitoral era destinado às crianças!
Pilula Hydrargyri: a pílula azul dos milagres
Um dos remédios industrializados de maior sucesso da história eram as “blue pills”: comprimidos feitos com uma receita secreta, que supostamente fazia milagres. As pílulas azuis eram encontradas na Europa desde o século 17 e indicadas para uma ampla gama de problemas de saúde: sífilis, cólera, doenças do fígado, tuberculose, reumatismo e até “melancolia”, que era a versão vitoriana da depressão. No século 18, elas também ganharam uma versão em xarope, que foi assustadoramente popular.
A tal pílula seria apenas um laxante quase inofensivo, não fosse pelo fato de que sua fórmula continha cerca de 30% de mercúrio, o que podia causar intoxicações graves e não curava absolutamente nada do que era prometido.
As blue pills também eram usadas como ingredientes em uma outra mistura peculiar, com cardamomo, lavanda e sal: a massa negra, um laxante poderoso usado principalmente por marinheiros, para diminuir o estrago da dieta à base de carne salgada e biscoitos secos que eram servidos nos navios.
As Pílulas de Thomas Beecham
As “pílulas Beecham” chegaram ao mercado inglês em 1850 pelas mãos de um farmacêutico com muito tino comercial. Thomas Beecham sabia que as mulheres eram responsáveis pela compra e administração dos remédios na maioria dos lares ingleses e criou uma estratégia de marketing voltada totalmente para o público feminino. Suas pílulas eram anunciadas como uma milagroso composto herbal, capaz de curar 29 doenças diferentes, que iam desde dores de cabeça até coisas genéricas como “mal das pernas”.
A análise química dessas pílulas, já no século 20, revelou que os comprimidinhos milagrosos nada mais eram do que placebos à base de aloe vera, gengibre e…sabão! No máximo causavam efeito psicológico. A propósito, elas só pararam de ser fabricadas em 1998.
Tuberculozyne
Na Era Vitoriana, a tuberculose era uma doença bastante comum e não é surpresa que vários tratamentos tenham sido tentados, embora a maioria deles fosse totalmente inútil. O mais famoso deles era o Tuberculozyne, uma fórmula americana patenteada nos anos 1880 e vendida dos dois lados do Atlântico até meados do século 20.
O Tuberculozyne consistia em duas garrafas que deveriam ser tomadas uma após a outra. Análises químicas dos frascos que chegaram até os dias de hoje revelaram os “segredos” da fórmula. A primeira garrafa continha brometo de potássio (usado como sedativo e remédio contra convulsões), soda cáustica, água e corantes alimentícios. A segunda garrafa era basicamente água, glicerina, corante caramelo e saborizante de amêndoa. Nenhum dos líquidos tinha qualquer efeito terapêutico; eram basicamente água colorida com sabor. Mas, numa época em que não havia controle sobre a produção de remédios e nem a obrigação de citar todos os ingredientes no rótulo, as pessoas ficavam à mercê de propagandas enganosas publicadas em jornais.
Detox Vitoriano
A ideia de sucos detox pode parecer moderna, mas ela já fazia parte da farmácia vitoriana. Havia vários tônicos que prometiam limpar o sangue e os intestinos, melhorando o humor e a aparência da pele e dos cabelos do usuário. Um dos ingredientes mais populares nesses tônicos eram os “Sais de Epsom” (sulfato de magnésia), que eram usados como base em receitas de laxantes, digestivos e remédios contra gases. Mas essas receitas tinham um sabor horrível e logo começaram a surgir no mercado versões com um gosto mais agradável, como a “Epsonade“:
A Epsonade ganhou força mesmo foi no século 20, principalmente depois que a Revista Britânica de Medicina publicou um artigo sobre como o consumo periódico da mistura pelos poetas poderia ajudar na busca por inspiração (!!!).
Alguns detox da farmácia vitoriana continuam no mercado até hoje, mas com outras funções. É o caso do “Sal de Frutas Eno“, hoje vendido como antiácido e digestivo. Ele era incrivelmente popular como “tônico intestinal” nas famílias vitorianas e deve sua disseminação pelo mundo a uma estratégia inteligente de seu criador. Após estabelecer formalmente a sua marca em 1868, o farmacêutico James Crossley Eno distribuiu vários pacotinhos da fórmula entre marinheiros ingleses, que acabaram espalhando o produto e sua fama pelo mundo.
Chlorodyne
No início do reinado da Rainha Vitória, em 1837, os tratamentos contra dor eram feitos à base de láudano. Foi com o passar do século que os primeiros analgésicos começaram a ser melhorados e o Chlorodyne foi um dos maiores sucessos da época – mas a gente já vai descobrir porquê.
O dr. Collis Browne criou a fórmula do Chlorodyne enquanto servia como médico do exército nas Índias Britânicas. Em 1854 ele estava na Inglaterra, de licença, e foi convocado para ajudar em um dos vários surtos de cólera que marcaram a Era Vitoriana e pôde testar a fórmula que havia criado em 1848. Em 1856, o Chlorodyne já era vendido em todos o Império Britânico. Ao contrário de outros medicamentos, seu sucesso não se devia à propaganda em jornais, mas ao boca-a-boca mesmo: ele realmente fazia as pessoas se sentirem melhor. O segredo? Uma combinação de clorofórmio e morfina. Altamente eficaz e também viciante.
Além de analgésico, o Chlorodyne era vendido como remédio contra tosse, asma, bronquite, diarreia, cólera, enxaqueca e insônia. Ao longo do século a fórmula foi aperfeiçoada e ganhou novos e recreativos ingredientes como láudano, tintura de cannabis e traços de cocaína.
Vinho Mariani
Vinho seria uma das últimas coisas que você pensaria encontrar na farmácia vitoriana, mas ele estava lá. Só que não era um vinho italiano qualquer. Essa fórmula de 1863, patenteada pelo médico italiano Angelo Mariani, consistia numa mistura de vinho francês de excelente qualidade com…folhas de coca.
O Vinho Mariani era vendido como um tônico mental, indicado para tratar estafa mental, problemas nervosos, melancolia/depressão, letargia, preguiça e fatiga de forma geral. Por razões óbvias, era muito popular entre os artistas, poetas, inventores e até entre os Papas. Além de Émile Zola e Thomas Edison, o Papa Leão XIII era um entusiasmado consumidor da bebida.
O sucesso comercial do Vinho Mariani só foi interrompido na época da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando as primeiras leis contra o comércio de cocaína começam a ser aprovadas na Europa e Estados Unidos. Aliás, falando em EUA, o Vinho Mariani foi a inspiração para a criação da Coca-Cola em 1885, que originalmente também levava folhas de coca e era vendida como um poderoso tônico.
Pílulas de Cocaína
As folhas de coca começaram a ser usadas na farmácia vitoriana nos anos 1850 e já na década seguinte os laboratórios conseguiram produzir um extrato de coca, que passou a ser usado na indústria farmacêutica e podia ser comprado por qualquer pessoa numa farmácia. Apesar de conhecer os efeitos do vício (aliás, esse tema já era considerado um problema na Era Vitoriana), a farmácia vitoriana também tinha a ideia de que o problema não era o consumo em si, mas a dose. Com as dosagens corretas, até a cocaína e o ópio poderiam ser aliados contra as doenças.
As pílulas à base de cocaína eram anunciadas como analgésicos para as mais variadas situações e muitos anúncios visavam as donas de casa, mostrando como as pílulas poderiam ajudar a diminuir o sofrimento das crianças. Então temos anúncios desses comprimidos para tratar a tosse, dores de garganta, dores de dente e até pequenos ferimentos. Muitas das fórmulas não chegaram até nós porque no final da Era Vitoriana a cocaína já estava sendo banida das farmácias, no que foi o início das políticas de combate às drogas no Ocidente. Mas alguns rótulos sobreviveram para a gente tenha uma ideia do que entrava na fórmula dos remédios:
Com uma fórmula suave à base de álcool, maconha, clorofórmio, morfina e enxofre, esse xarope prometia acabar com a tosse numa dia e é a essência da farmácia vitoriana: perigosa, ineficaz mas provavelmente bem divertida.
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Uma resposta
Adorei esse artigo!
Parabéns!!!
“Nota 10” pelas informações!