A Modista do Desterro – Pauline Kisner

Vestindo a Dama Vitoriana (1860s)

A dama vitoriana vivia sob regras muito estritas não só de comportamento, mas também de vestimenta. Claro que, quando falamos sobre “dama vitoriana”, estamos nos referindo às mulheres ricas e de classe média. Tanto para nobres quanto para plebeus ricos, a esposa (e as filhas, quando elas alcançavam a idade de debutar na sociedade), era uma vitrine do sucesso da família. Além de um comportamento exemplar e de uma boa educação, a dama vitoriana deveria saber se vestir muito bem. A elegância da mulher estava ligada ao sucesso do marido e uma dama bem vestida atestava para o mundo que seu esposo tinha meios de mantê-la nas últimas modas de Paris.

Graças à Revolução Industrial, que fez com que  posse de terras deixasse de ser a única fonte de riqueza, o século 19 assiste à consolidação de uma nova classe social: a burguesia. Entre os burgueses nós encontramos desde os donos de grandes indústrias e bancos até a chamada classe média, formada por donos de pequenas fábricas e comércios (pense em um boticário bem-sucedido ou no dono de um armazém, daqueles que vive em sobrados), funcionários públicos, contadores e profissionais liberais (médicos, advogados, professores, engenheiros, arquitetos). As esposas e filhas desses homens eram ensinadas desde cedo o que era necessário para serem perfeitas damas vitorianas. Mas, ao contrário dos nobres, esse conhecimento não era passado naturalmente de uma geração para outra, ele precisava ser conquistado. Não é por acaso que, justamente no século 19, vemos os livros de etiqueta se multiplicarem e se tornaram best-sellers!

Uma das minhas autoras favoritas desse tipo de livro é Florence Hartley. É uma pena que não tenhamos muitas informações sobre a vida dela. Até suas datas de nascimento e morte são dadas como desconhecidas! Em vida, Hartley escreveu dois livros que eu considero essenciais para a chamada “literatura feminina” da Era Vitoriana: “Ladies’ Hand Book of Fancy and Ornamental Work” (1859), um livro de instruções sobre trabalhos manuais femininos, e The Ladies’ Book of Etiquette, and Manual of Politeness (1860), um dos melhores tratados de etiqueta do século 19. Basicamente, tudo o que uma aspirante a dama vitoriana precisava saber para ter sucesso na sociedade estava nesses dois livros. Uma curiosidade é o fato de que Hartley era contrária ao uso de corsets e defendia a prática de exercícios como caminhada, tudo em nome da boa saúde feminina. Seu livro de etiqueta foi um best-seller da época, reeditado várias vezes ao longo do século!

8 Dicas pra vestir uma dama vitoriana

O segundo capítulo do livro de etiqueta de Florence Hartley é dedicado inteiramente à arte de vestir-se de forma apropriada. Segundo a autora, há oito coisas que a dama vitoriana devia levar em consideração ao se vestir:

ESMERO, que incluía o cuidado com a higiene pessoal e com a roupa em si. A autora fala especialmente do cuidado em se usar sempre colarinhos limpos e engomados e da maneira correta de guardar cada peça do vestuário de modo a evitar que fiquem muito amassadas ou danificadas. Ela até inclui dicas para o armazenamento correto das roupas que estão fora da estação: em caixas, com cânfora, para evitar mofo e traças.

ADAPTABILIDADE, ou o cuidado de usar vestidos adequados para cada ocasião, sem sobrecarregar o look. Uma dama vitoriana recebendo visitas com um traje de baile seria algo não só pouco prático, mas motivo para ser ridicularizada por não saber se vestir. Assim como ir a um jantar com um traje de passeio!

HARMONIA de cores e materiais, levando em consideração o tipo de vestido, a ocasião onde será usado e quais paletas se adaptam melhor ao cabelo e tom de pele da mulher. A autora também alerta contra o uso de materiais conflitantes entre si: uma renda cara e fina jamais pode ser usada com um vestido de algodão, apenas com seda.

TENDÊNCIAS, onde Hartley aconselha à dama vitoriana ter o bom senso de nem ser escrava da moda, nem ser uma completa excêntrica. Sobre os novos estilos de vestido sendo introduzidos a cada estação, a autora aconselha suas leitoras a pensarem em adaptações para o seu gosto e conforto.

ESTILO E FORMA, lembrando que é preciso que o guarda-roupa se adapte à pessoa e não o contrário. Hartley lembra com frequência que um vestido de algodão simples, bem feito e sob medida, pode ser mais elegante do que um vestido de seda feito sem o devido cuidado.

ECONOMIA, um conceito que hoje traduziríamos na ideia de consumo consciente. Hartley fala muito sobre avaliar a durabilidade do traje, se ele poderá ser reutilizado em outras estações ou mesmo transformado em outras peças no futuro.

CONFORTO, o que é auto-explicativo: nenhuma roupa, sapato ou acessório, por mais lindo que seja, vale ferir o corpo em nome da elegância.

DETALHES, as pequenas coisas que elevam ou derrubam um traje. Hartley fala muito sobre o cuidado com as pequenas coisas e sobre o poder que acessórios e decorações bem-colocadas têm de transformar até o vestido mais simples em uma super produção.

Pelo menos para mim, todos os conselhos da Hartley podem ser aplicados aos dias atuais!

Os 7 vestidos básicos da Dama Vitoriana

1. Morning Dress / Vestido de Casa

Também conhecido como wrapper, é um vestido mais simples e solto no corpo, com a cintura solta ou ajustado ao corpo através de um cordão ou cinto leve. Ao sair do quarto para tomar café e iniciar sua rotina, a dama vitoriana deveria vestir um wrapper, que era feito preferencialmente em tecidos de algodão estampado: musselina (não a que temos hoje), chita (idem) ou xadrez. Era comum que tecidos diferentes fossem combinados:

Para proteger o vestido durante as tarefas da casa (mulheres de classe média costumavam ter poucos criados e sim, elas faziam algumas das tarefas da casa, como cozinhar), usava-se um avental. Era comum o uso dos aventais alfinetados ao busto do wrapper, sem alça nos ombros. A dama vitoriana mais elegante podia, inclusive, optar por estilos de avental bem fashion:

E como nenhuma mulher minimamente elegante andava com a cabeça descoberta mesmo em casa, nossa dama vitoriana finalizava seu look matinal com um toucado elegante, feito de renda ou tule:

2. Vestido de Visitas

Uma dama não poderia receber visitas matinais em seu wrapper, a menos que ele fosse muito elegante ou a visita chegasse de forma inesperada ou muito cedo. Tanto para fazer quanto para receber visitas, a dama vitoriana precisa pôr em prática toda a sua habilidade e elegância, pois isso poderia afetar sua reputação na sociedade!

Para as visitas, a dama vitoriana não podia se vestir nem acima, nem abaixo da ocasião. O vestido deveria ter um corpete alto, com mangas e colarinhos brancos (preferencialmente bordados), e ser usado sem toucados, a menos que a dama tivesse um problema de queda de cabelo, por exemplo.

Para visitas matinais, aconselhava-se vestidos lisos ou com pouca decoração.

No inverno, luvas escuras e peles deveriam fazer parte do traje.

Para as visitas de compromisso, especialmente as de felicitações por um casamento, o vestido deveria ser de seda clara, usado com um chapéu elegante, um xale ou capa leve, e luvas claras. No verão, o xale poderia ser substituído por uma mantilha de renda ou seda.

3. Vestido de Passeio

O vestido de passeio era pensado para ser usado na rua, portanto não deveria ter cauda e sua barra era um pouco mais curta que o habitual (o que não faz lá muito diferença com a crinolina). A dama vitoriana usava trajes de passeio em diferentes locais: para fazer uma caminhada, para fazer compras em lojas elegantes, para ir ao mercado abastecer sua casa etc. Isso não impedia que os modelos que apareciam nas revistas de moda, destinados às mulheres mais ricas, trouxessem vestidos com uma cauda leve e em materiais mais nobres.

O vestido de passeio era feito em materiais mais encorpados, que resistissem à sujeira das ruas e pudessem ser lavados com frequência, sem sofrer danos. Também deveria ser usado um material que amassasse pouco e não tivesse muitos detalhes que pudessem ficar presos durante a caminhada. Ou seja, sedas mais leves e rendas estavam excluídos.

De forma geral, o vestido de passeio seguia a silhueta de cada época, mas sempre com corpetes de decote alto, chamados curiosamente de “corpetes afogados” aqui no Brasil.

Para ir às compras em lojas no inverno, vestidos de lã com bonnet de veludo, sem decorações; no verão, algodões encorpados e lãs frescas, com bonnet de palha trançada. Hartley aconselha o uso de cores sóbrias e em tons que não desbotem com facilidade. Uma possibilidade que parece ter sido bastante comum nos anos 1860 era que o vestido fosse usado de modo a revelar uma saia mais escura embaixo, que poderia resistir melhor à sujeira das ruas:

Vestidos de passeio eram comumente usados com mantas, xales, paletós e capas:

Hartley também é bem específica com relação aos sapatos: vestidos de passeio devem sempre ser usados com botas de boa qualidade, resistentes, confortáveis e elegantes, que poderiam ser feitas de couro ou lã:

Para aquecer as pernocas e deixar as botas mais estilosas, os spats ou perneiras eram uma solução fashion:

4. Vestido de Viagem

O século 19 é o século dos trens, que permitiam à nossa dama vitoriana viajar de forma segura, rápida e barata, sem comprometer sua honra. Mas as viagens também requeriam trajes especiais.

Hartley aconselha cores sóbrias e vestidos lisos ou com decorações mínimas, em materiais resistentes. Para as mães-viajantes, ela é categórica em indicar vestidos escuros, de materiais laváveis. Um bonnet de palha trançada, decorado na mesma cor do tecido, era obrigatório, coberto com um véu que cairia parte sobre o rosto e parte sobre a nuca, protegendo o bonnet da poeira da estrada. Jóias e rendas eram proibidos por questões de estética e de segurança. Capas e mantos deveriam ser do mesmo tecido do vestido.

Hartley também aconselha que corsets e anáguas de trajes de viagem devem ser escuros, assim como luvas e meias.

5. Vestido de Jantar

Para a dama vitoriana, o jantar era um evento formal. Aquilo que você vê nos filmes, de a família trocar de roupa para o jantar, não é invenção do cinema. Nas famílias elegantes, esperava-se que todos estivessem devidamente vestidos para aquela que era a refeição mais formal do dia. Assim, o vestido de jantar era o segundo vestido mais luxuoso do guarda-roupa feminino, atrás do vestido de baile. Para as mulheres nobres, havia ainda o vestido de apresentação à Corte, mas vamos falar sobre isso lá no final.

O vestido de jantar deveria ser feito em seda e tanto mais elaborado quanto o número de convidados esperados para o jantar. Os chapéus e toucados matinais estavam dispensados aqui. O cabelo da dama deveria ser trabalhado em penteados elaborados, cheios de cachos e volteios, e adornado com tiaras e pentes decorados. Para o jantar, flores deveriam ser evitadas; em seu lugar, deveria-se usar toucados com fitas de cetim ou veludo e muita renda.

O típico de vestido de jantar dos anos 1860 tem um decote mais baixo, mas não deixa os ombros de fora. Para jantar com a família ou um pequeno círculo de amigos, Hartley sugere o uso de vestidos de algodão claro no verão e sedas escuras para o inverno:

6. Vestido de Baile

O vestido de baile é a estrela do guarda-roupa da dama vitoriana. É o vestido mais elegante e caro que ela teria e também aquele que só seria usado em casos específicos. Para os anos em que a crinolina esteve em uso (1850-1860s), a maior crinolina era destinada aos vestidos de baile. Tradicionalmente, esse tipo de vestido não tem cauda, pelo menos não na Era das Crinolinas.

Vestidos de baile têm três características básicas: decote ombro a ombro, mangas curtas, seda é obrigatória. Se você ver algum vestido de algodão por aí classificado como de baile, tem alguma coisa errada, rsrsrsrs.

Com o vestido de baile, ou toilette de soirée, nossa dama vitoriana usaria todo o seu arsenal de luxo e beleza. Os penteados mais elaborados (com apliques), tiaras, jóias, laços, plumas, perfumes…tudo entra no traje de baile e é a única situação em que o luxo não era imediatamente condenado nos manuais de etiqueta.

Para as mulheres jovens, aconselhava-se o uso de vestidos de seda clara, adornados com rendas, flores, franjas e laços de seda ou veludo. Para as mulheres mais maduras, aconselhava-se vestidos em tons mais escuros. As mulheres idosas ou que já tivessem perdido um pouco do viço da pele do colo poderiam fechar o decote com delicadas mantilhas de renda ou tule bordado.

Na cabeça, penteados elaborados e tiaras de fitas, flores naturais e artificiais, pérolas, etc:

7. Vestido de Luto

Numa época em que as taxas de mortalidade eram mais altas, toda dama vitoriana precisaria vestir o luto pelo menos uma vez na sua vida, por parentes em diferentes graus e até nos períodos de luto oficial pela morte de um governante ou membro da família real. No blog da Floripa Dazantiga existe um post excelente (olha o marketing pessoal aí, hahahahahaaa) sobre os estágios do luto, que te ajuda a entender todas as regras da coisa.

De maneira geral, a dama vitoriana precisava ter pelo menos dois vestidos de luto: um de tecido totalmente fosco para o luto fechado e outro de tecidos mais nobres, para o luto aliviado. O que chamamos de “vestido de luto” são basicamente versões dos vestidos tradicionais em estilos apropriados para o período de luto. Então, existem “vestido de jantar de luto”, “vestido de viagem de luto”, etc.

Num mundo ideal, a dama vitoriana não participaria de eventos sociais durante o período de luto fechado. Mas, a julgar pelas críticas constantes em jornais e nos discursos moralizantes, a prática eram bem diferente dos livros de etiqueta. Possivelmente, isso seria alguma coisa que atrairia olhares de reprovação, em especial das pessoas mais velhas.

Um caso à parte: o vestido de apresentação à corte

O vestido de corte é uma herança do século 18 e um traje que seria usado em casos muito especiais. Nos países monárquicos, a apresentação de uma moça na sociedade não se dava apenas nos salões. Se ela fosse de família nobre, passaria por um ritual de apresentação formal ao Rei e Rainha, para o qual ela seria preparada nos anos anteriores. Cada Corte tinha seu traje próprio, com regras próprias em termos de cor, decorações, estilo de traje e tamanho da cauda. Aliás, a cauda é uma peça obrigatória em todos os trajes de Corte, uma herança direta do Robe de Cour do século 18.

Na galeria a seguir separei alguns exemplos de trajes de corte dos anos 1840-1860 para vocês terem uma ideia da diversidade que havia só na Europa (nem considerei Brasil e México!)


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