Ao contrário do que muita gente pessoa, pesquisar moda não é só falar sobre roupas e como elas mudaram ao longo do tempo. Moda é um negócio muito mais amplo, que engloba não só aquilo que o ser humano usa para proteger e enfeitar seu corpo; ela é o fenômeno social da mudança cíclica dos costumes e dos gostos, que afeta roupas e acessórios, mas também os alimentos que consumimos. Quer um exemplo atual de como isso funciona? Nutella. Esta marca de creme de avelã existe desde 1940, mas só nos últimos dez anos foi elevando à condição de estrelinha da culinária gourmet, em grande parte graças ao buzz das redes sociais, que criou aquilo que muita gente (inclusive eu) chama de “modinha de enfiar Nutella em tudo”. Não é a primeira vez que isso acontece: o chocolate e o café também tiveram sua “fase modinha”. Hoje, vamos falar um pouco sobre como o chocolate quente surgiu e se tornou um fenômeno de consumo no século 18.
Quando falamos em chocolate nos dias de hoje, a maioria de nós pensa em barras ou bombons doces. Mas, durante a maior parte de sua história, o chocolate foi uma bebida nem sempre consumida com açúcar, mas com a adição de temperos que hoje nós consideraríamos bem estranhos.
A matéria-prima do chocolate é o cacau, fruto de uma árvore nativa das florestas tropicais do continente americano, que já era conhecida e utilizada pelos povos nativos da América bem antes das chegada dos europeus, em 1492. Alguns pesquisadores encontraram evidências que apontam que o cacau e suas sementes já eram utilizados por aqui pelo menos 2 mil anos antes de Colombo chegar. As sementes eram usadas como moeda (um documento asteca dos anos 1500 nos informa que 100 sementes de cacau eram suficientes para comprar um peru de bom tamanho!) e também para produzir o xocoatl, uma bebida amarga com adição de pimentas nativas. Foi esse xocoatl que os espanhóis descreveram como “mais apropriada para ser lançada aos porcos do que para ser consumida pelos homens”.
Bernaz Diaz del Castillo, cronista espanhol que esteve na América no século 16, descreveu a fabricação do xocoatl: as sementes de cacau eram esmagadas com pimenta até formarem uma pasta e essa mistura era depois fervida até levantar espuma, sendo servido quente e picante.
O cacau chegou à Espanha em 1527 como uma coisa exótica, que não agradou aos paladares da Corte. Foi somente nos anos 1580, depois de ganhar fama como remédio, que o cacau passou a ser regularmente levado para a Espanha. Talvez mais do que pelas suas propriedades medicinais, o cacau caiu mesmo no gosto da nobreza foi quando algum cozinheiro teve a brilhante ideia de misturá-lo com açúcar. Aí o chocolate quente começou a ganhar a forma que conhecemos hoje e se tornou moda na Espanha. Bebia-se uma xícara de manhã, em jejum, para estimular a mente. As damas espanholas introduziram o chocolate quente no lanche da tarde e até os padres adotaram o hábito, apesar das polêmicas se a bebida não estimulava demais os sentidos e se podia ser consumida na Quaresma.
No século 17, o chocolate quente já era um sucesso e tinha se espalhado pela Europa como uma bebida essencialmente da nobreza. Tanto que na França havia um único comerciante autorizado a vender chocolate, com uma permissão de exclusividade assinada pelo próprio Luis XIV! Só para fins de comparação: o chá era uma bebida fina no século 17, mas uma caneca de chocolate quente chegava a custar 3x mais que uma de chá, o que restringia seu consumo aos nobres e aos burgueses mais ricos.
A primeira receita de chocolate quente
O primeiro registro por escrito de uma receita de chocolate quente é de um tratado específico sobre o chocolate, publicado na Espanha em 1631:
“Tome uma centena de sementes de cacau, duas pimentas, uma porção de sementes de anis e duas de baunilha, duas dracmas de canela, uma dúzia de amêndoas e o mesmo de avelãs, meia libra de açúcar branco e colorau que baste para dar cor”
O autor não dá mais detalhes sobre o preparo, mas é possível que os ingredientes fossem todos pisados com ajuda de um pilão e depois fervidos com água. Pelo fato de que muitos livros da época não traziam instruções claras, era necessário que as receitas fossem executadas por cozinheiros experientes, que conhecessem o gosto dos seus empregadores e as características dos ingredientes combinados. Assim, no século 17 surge uma nova profissão, o chocolateiro, um especialista na fabricação da exótica bebida, que vinha acompanhado de uma ferramenta própria: a chocolatière, um bule especial para servir o chocolate quente.
As chocolateiras eram feitas em vários tipos de material, de porcelana pintada à mão ao cobre e até esmaltados (como as xícaras de vovô, sabe?). Elas tinham duas características fundamentais: uma alça perpendicular ao bule, que permitia servir a bebida sem risco de queimaduras; uma tampa perfurada por se passava uma peça de madeira ou metal, que era girada para evitar que a bebida assentasse no fundo.
As primeiras “barras” de chocolate
No século 18, o chocolate foi se tornando cada vez menos aristocrático, em parte graças ao estabelecimento das fazendas de cacau na América. Nos anos 1700s, as “casas de chocolate” se espalharam pela Europa e se tornaram locais de encontro de políticos, filósofos e profissionais liberais. Foi também nesse século que a pimenta foi sendo retirada gradativamente das receitas e água, substituída pelo leite, e as primeiras barras de chocolate apareceram.
A barra de chocolate da época, porém, era bem diferente da nossa. Ela não recebia leite, açúcar ou qualquer outro ingrediente além do próprio cacau. Era apenas uma maneira de conservar e comercializar o cacau com mais facilidade, e o resultado final de um longo e trabalhoso processo que você pode conferir nesse vídeo:
Chocolate quente na Era Vitoriana
O século 19, em particular a Era Vitoriana, viu o chocolate se popularizar de uma forma geral. As barras de chocolate sem açúcar podiam ser encontradas facilmente no comércio e com diferentes graus de qualidade e preços. Se as casas de chocolate do século 18 desapareceram para dar lugar aos cafés, o chocolate quente ganhou os espaços domésticos. Na versão mais barata, ele era feito com água, mas também podia ser feito com leite para uma versão mais cremosa. O pó de cacau também passou a ser comercializado em pacotes, facilitando ainda mais a disseminação da bebida. Sua fama de estimulante, associada à ideia de que era um alimento de alto valor nutritivo, permaneceu entre as camadas populares, enquanto que os mais ricos se voltavam para o café.
O chocolate quente começou a ganhar a forma que conhecemos hoje a partir de 1876, quando um chocolateiro suíço conseguiu adicionar leite em pó ao cacau, criando a primeira barra de chocolate ao leite. A partir daí, o chocolate se tornou mais popular do que nunca e o chocolate quente, cada vez mais cremoso.
Receitinhas
Esse artigo imenso, tanta história, só porque eu queria compartilhar com vocês algumas receitas históricas de chocolate quente. Então, vamos às receitinhas!
[1652] – Registro do capitão inglês James Wadsworth
Ingredientes: 1 e 1/2 colher de sopa de cacau em pó; 1 e 1/2 csp de açúcar; 1/2 colher de chá de canela em pó; 1 colher de cafezinho de cravo em pó; 1 colher de cafezinho de anis estrelado em pó; 1 colher de cafezinho de pimenta caiena; 1/2 xícara de leite; 1/2 xícara de água.
Preparo: misture os ingredientes e leve ao fogo baixo, mexendo sempre até engrossar.
[1590s] Receita do livro “Recipes Fit for a Queen”, que traz adaptações modernas de receitas servidas à Rainha Elizabeth I
Ingredientes: 2 sementes de cardamomo, 2 sementes de anis estrelado, 1 pitada de pimenta chili, 1 colher de chá de canela em pó, raspas da casca de 1/2 laranja, 75g de chocolate amargo (70% caca, no mínimo), 400ml de leite integral.
Preparo: torre as sementes em uma grelha ou frigideira por alguns minutos. Acrescente os temperos em pó e as raspas da laranja. Cozinhe até as raspas secarem. Moa os temperos todos em um pilão até obter um pó fino. Quebre o chocolate e leve ao fogo baixo com o leite e os temperos moídos, mexendo sempre até derreter e engrossar.