A Modista do Desterro – Pauline Kisner

O Casamento na Era Vitoriana

No século 19, o principal papel que uma mulher deveria desempenhar na sociedade era o de ser mãe e esposa. Através do casamento, ela poderia fazer alianças políticas e financeiras importantes para sua família, salvar uma propriedade comprometida por dívidas e até subir algumas posições na sociedade. Mas, para realizar um bom casamento, havia algumas exigências que a jovem mulher deveria cumprir e a principal delas era o dote, uma determinada quantia em dinheiro, terras, rendas ou mesmo um título de nobreza que a noiva levava consigo para o casamento e transmitia ao marido e aos filhos. Mesmo alguns deslizes morais, desde que não muito escandalosos, poderiam ser tolerados diante de um bom dote.

Os rapazes ricos (nobres ou não) entravam no mercado matrimonial somente após completarem seus estudos, por volta dos 25 anos. Para as mulheres da elite, o estudo era opcional e, quando ele existia, tinha como objetivo melhorar as chances de um bom casamento e não apenas instruir a mulher. Sobre a educação das elites, sugiro a leitura desse artigo.

Antes do casamento, a Sociedade!

Uma das principais regras do casamento entre as classes médias e altas era a de que uma moça só poderia se casar após ser apresentada formalmente à sociedade, através de um baile de debutante. Na Inglaterra e em outras monarquias, esse baile era uma ocasião muito formal durante a qual as filhas dos nobres eram apresentadas à Corte e passavam a existir oficialmente entre a nobreza. Entre os burgueses, os bailes de debutante eram eventos nos quais as moças eram apresentadas à sociedade e avaliadas pelos futuros noivos. Na França, por exemplo, havia os bailes brancos, nos quais eram admitidas somente moças (e suas mães ou tias como acompanhantes) vestidas de branco dos pés à cabeça, que deveriam ser “examinadas” pelos rapazes solteiros, também acompanhados de suas mães.  As mães estavam ali não apenas para zelar pela conduta das próprias filhas, mas também para avaliar os dotes das futuras noras e as conexões das famílias delas. As moças costumavam debutar por volta dos dezessete ou dezoito anos, mas essa idade podia ser antecipada ou adiada de acordo com as possibilidades ou necessidades financeiras da família.

Depois de ser apresentada à sociedade, uma jovem não deveria esperar muito tempo antes do noivado. Na França, considerava-se adequado que a moça já ficasse noiva no primeiro ano em que estivesse frequentando a sociedade. Na Inglaterra, também havia uma certa urgência em realizar os arranjos matrimoniais, o que podia ser postergado se a moça ainda fosse muito jovem. Aparecer por três anos seguidos na temporada social sem conseguir um casamento podia abrir espaço para fofocas: a noiva talvez não fosse virtuosa ou, pior, não tivesse um dote atraente. Com isso, suas possibilidades de fazer um bom casamento começavam a diminuir.

 Ao contrário do que possa parecer, nem todos os casamentos do século 19 eram um mero arranjo entre famílias, com objetivos escusos. Ao longo do século, conforme a ideia de amor romântico vai se disseminando na sociedade, mais pais começam a levar em consideração as afeições dos filhos, mas isso não é de forma alguma uma regra. O que era realmente comum era que o cônjuge fosse escolhido dentro das relações da própria família: podia ser um irmã ou irmã do melhor amigo, primos distantes, vizinhos.

O que se deveria evitar sempre era “casar abaixo de suas possibilidades”: desposar alguém que estivesse numa posição social inferior ou não fosse pelo menos tão rico quanto você. Para evitar que as fortunas saíssem das famílias, casamentos entre parentes de primeiro grau eram comuns.  Betty de Rotschild, a baronesa imortalizada na pintura de Ingres ao lado, foi um desses casos: nascida em uma família de banqueiros franceses de origem judia, em 1848 ela se casou com o tio paterno e sua filha mais velha, Charlotte, se casou com um primo em primeiro grau. A fortuna se manteve intacta e Betty de Rothschild foi uma das mulheres mais ricas do século 19.

Acertando os detalhes

Como um homem jamais poderia falar diretamente com uma mulher à qual ainda não tivesse sido apresentada e a proposta de casamento jamais poderia partir da mulher, restava às famílias intermediar os detalhes do casamento. Por uma questão de educação, as mulheres deveriam ser poupadas do conhecimento de todos os detalhes financeiros daquele que seria, idealmente, o ponto alto da vida de uma jovem. Casais que já se conheciam podiam ter um pré-pedido antes de o rapaz comunicar suas intenções à família.

Assim que a família da moça aceitasse a proposta da família do rapaz, eles se tornavam oficialmente noivos e ele passava a frequentar a casa dela. Em sua primeira visita oficial, marcava-se a data do jantar de noivado, que era um evento íntimo reunindo apenas as famílias dos jovens, realizado na casa da noiva. Durante esse jantar o rapaz entregava a aliança à moça, que podia retribuir com um medalhão contendo seu retrato ou alguns cachos de seu cabelo.

Fazendo a corte

O noivado ideal deveria durar de três semanas a alguns meses. Noivados muito longos levantavam suspeitas, assim como os muito curtos.

Entre o noivado e o casamento, um noivo rico deveria mandar flores todos os dias à noiva e à mãe dela. No começo do século, essas flores deveriam ser totalmente brancas, mas a partir dos anos 1870, por influência oriental, adota-se um novo costume: as flores vão passando do branco ao rosa, até se tornaram púrpuras na véspera do casamento. O púrpura era considerado símbolo do amor ardente.

Além de enviar flores, o noivo deveria visitar diariamente sua futura esposa para “fazer a corte”, mas sob certas regras:

* Não podia ficar a sós com ela. Sempre haveria a mãe ou outra pessoa de confiança da família presente no ambiente;

* Não podia manter contato físico com ela;

* Deveria se mostrar controlado, sem manifestar amor excessivo pela jovem;

* Deveria aproveitar o tempo da corte para conhecer melhor a noiva, mas evitando assuntos impuros ou do mundo masculino, como política e religião.

Da noiva, esperava-se que se mostrasse recatada, inocente e que não falasse sobre política ou demonstrasse excessiva inteligência, pelo menos não maior que a da noivo. Durante o noivado, a moça deveria se encarregar do seu enxoval, assunto sobre o qual vou falar em um próximo artigo 😉

O contrato e a corbelha

Embora pudesse envolver uma certa afeição, o casamento era um negócio muito claro para a classe média tanto quanto para a nobreza. Especialmente entre os burgueses, esse negócio envolvia um contrato lavrado em cartório, especificando as obrigações financeiras de ambas as partes envolvidas. Esse contrato podia, inclusive, prever a comunhão parcial de bens, como acontecia na França.

No dia da assinatura do contrato de casamento, o noivo deveria enviar à casa da noiva uma corbelha: uma certa quantidade de presentes, a maior parte heranças de família, que simbolizavam sua aceitação na nova casa. No começo do século, a corbelha era enviada em um cesto de palha trançada forrada com cetim branco. Por volta de 1900, já era enviada dentro de caixinhas próprias para isso. O valor total da corbelha deveria corresponder a 5% do valor do dote da noiva.

Na cesta ou na caixa iam rendas brancas e pretas que pertenciam à família do noivo, bem como jóias, passadas de geração em geração ou novas. Frascos de perfume, leques, tecidos finos, xales, estolas, peles, bombonnières e bibelôs valiosos. Por fim, um livro de orações para a missa de casamento e um saco de moedas de ouro que a noiva deveria distribuir para a caridade.

A cerimônia

“O Casamento Desigual”, por V.V. Pukirev.

A cerimônia de casamento podia assumir várias formas. Famílias mais tradicionais, ou desejando demarcar seu poder na sociedade, podiam optar por grandes cerimônias religiosas, com vários convidados, decoração rica e um padre ou bispo de renome. Dependendo das inclinações políticas ou religiosas, um casal poderia optar por uma união realizada apenas no civil, mais discreta e para um número menor de convidados.

Sendo o século 19 tanto um período de afirmação do liberalismo  como de exaltação do fervor religiosos, muitas famílias optavam por uma cerimônia religiosa. A maior parte desses casamentos acontecia no período da manhã, antes ou próximo ao meio-dia.

Muito da cerimônia católica da atualidade se mantém quase inalterada em relação ao século 19. A noiva deveria entrar vestida de branco (o costume se estabelece justamente naquele século), com véu e uma grinalda de flor de laranjeira, que simbolizava a pureza. Era conduzida pelo pai até o altar e escoltada por duas damas-de-honra, suas amigas que faziam as vezes de madrinhas. Após a missa e bênção, a mulher recebia do marido a aliança matrimonial, mas somente a partir do fim do século é que os homens também passaram a usar a aliança.

A prática do beijo, mesmo na testa,  era desencorajada. Logo após a cerimônia, ainda na igreja, os noivos receberiam os cumprimentos de amigos e parentes, dos quais apenas os mais velhos podiam beijar a testa da noiva em sinal de consideração. Basta lembrar que a própria Rainha Vitória recebeu um beijo na fronte do Duque de Sussex, mas não foi beijada pelo Príncipe Albert no fim da cerimônia. Os vitorianos consideram demonstrações públicas de afeto, especialmente entre os sexos, como falta de decoro.

Na Inglaterra, era comum que os noivos saíssem da igreja sob uma chuva de arroz.

A recepção

Esperava-se que a família da noiva pagasse pela cerimônia e pela recepção, caso houvesse uma.

A recepção deveria ser realizada na casa da noiva e deveria ser preferencialmente um almoço ou café da manhã. Bailes de casamento só eram comuns entre os muitos ricos e a própria Rainha Vitória teve um café-da-manhã como recepção de seu casamento.

Após a cerimônia, o casal deveria esperar os convidados de pé no local da recepção. Os convidados eram conduzidos ao salão pelos padrinhos do noivo e cumprimentavam o casal novamente.

O casal era servido sentado, mas todos os outros convidados eram servidos em pé, a menos que houvesse espaço para disponibilizar mesas para todos. Aqui aparecem novamente elementos que são mantidos até hoje na tradição do casamento: o bolo branco e o brinde com champanhe eram obrigatórios.

Os casamentos urbanos costumavam ter apenas um dia ou noite para a recepção, enquanto os casamentos rurais ainda preservavam antigos costumes de dois ou três dias de celebrações. No caso dos casamentos urbanos, a noiva deveria permanecer com seu vestido de noiva até a hora de uma verdadeira inovação do século 19: a lua-de-mel.

Lua de mel

Após a cerimônia e recepção, o casal podia partir em lua-de-mel, se tivesse meios para isso. As viagens de núpcias à Itália já eram populares nos anos 1870, mas outros destinos, como a Noruega ou a Suécia, também eram bastante procurados. Na Inglaterra, o casal deveria sair em viagem de núpcias logo no dia seguinte ao casamento, enquanto na França era considerado de mau gosto partir tão cedo, devendo os noivos iniciarem a viagem somente seis ou oito semanas após o casamento.  As viagens de lua-de-mel começaram a se difundir a partir dos ano 1830, pensadas como uma maneira de dar mais intimidade ao casal longe da família e dos compromissos sociais. No fim do século, mesmo a viagem pela Europa começa a cair em desuso, dando lugar aos hotéis elegantes de Paris.

Ao retornarem da viagem de núpcias, o noivo deveria cruzar a porta da casa com a noiva no colo, para evitar que ela tropeçasse, o que era sinal de má sorte no casamento.

FONTES:

ARIÈS,Philippe; DUBY, Georges. História da Via Privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra Mundial.

Bazar Book of Decorum. The care of the Person, Manners, Etiquette, and Ceremonials, 1873

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