Há um conceito muito usado pelos historiadores para se referir ao tipo de organização política e social que predominava na França antes da Revolução Francesa e no restante da Europa até meados de 1840, mais ou menos: Antigo Regime. No século XVIII, o Antigo Regime era a regra: uma sociedade desigual, dividida entre a nobreza e resto; monarquias absolutistas, com os reis concentrando o poder político e econômico e agindo como sóis em torno dos quais a nobreza se organizava; uma economia ainda baseada fortemente na agricultura e ancorada no trabalho; taxas de natalidade e mortalidade igualmente elevadas. Portugal não era uma exceção.
Como em qualquer outro reino durante o Antigo Regime, Portugal tinha no Rei a figura mais importante. Além das óbvias funções políticas, el-Rei tinha uma função social importantíssima, pois a sociedade de Corte se organizava em torno dele. Assim como ocorreu em Versalhes, esse foi um processo intencional, através do qual o rei pôde manter a nobreza próxima dele e desprovida de suas funções militares e criar uma rede de privilégios e honrarias que mantinham essa nobreza sob controle. Longe dos campos de batalha onde seus ancestrais haviam feito nome na época das Cruzadas, por exemplo, os nobres aspiravam à honra. E esta honra vinha, principalmente, das relações de sua família com outros nobres e especialmente com a Casa Real.
A “Casa Real Portuguesa” é um termo que se refere não apenas à Família Real e aos palácios por ela habitados, a uma imensa estrutura formada pelo rei e sua família, pela nobreza e pelos criados. Dentro da Casa Real, as relações e as funções de cada indivíduo eram profundamente ritualizadas e definidas por uma rígida hierarquia baseada na qualidade da pessoa – ou seja, na sua condição de nascimento e na honra atribuída à sua família.
Uma criadagem nobre
Nem todos os criados que exerciam funções na Casa Real eram plebeus. Na verdade, as funções eram divididas em dois grupos, que refletiam bem a concepção de sociedade da época. Os principais oficialatos, chamados de cargos-mores ou ofícios superiores, eram destinados apenas à Alta Nobreza e exercidos por membros de famílias que tinham um longa tradição de fidelidade servindo aos reis de Portugal. Os ofícios inferiores, incluindo as atividades domésticas que normalmente atribuímos aos criados, eram exercidos por pessoas vindas de diferentes grupos sociais. Mesmo entre os criados que realizavam tarefas domésticas simples, como limpeza, havia uma certa diferenciação de acordo com a casa onde eles serviam, de modo que uma arrumadeira no Palácio do Rei tinha mais prestígio do que uma arrumadeira na cada de um comerciante, por exemplo.
Os cargos-mores eram ligados diretamente à administração do reino, da Casa Real e à própria figura de el-Rei. Para exercer estas funções, os nobres não recebiam qualquer tipo de pagamento, pois trabalhar para sobreviver era considerado indigno de alguém com um nascimento tão elevado. Em lugar de dinheiro, o pagamento dos cargos-mores vinha na forma de status social através do reconhecimento público da qualidade da família, de sua longa linhagem nobre (havia uma diferenciação entre as famílias antigas e as famílias enobrecidas recentemente) e dos bons serviços prestados ao soberano e ao reino.
Os ofícios inferiores trabalhavam em troca de um salário e exerciam tarefas auxiliares na administração e serviços braçais ligados à manutenção doméstica. Eram sempre subordinados a um oficial-mor.
Ofícios Hierarquizados
Para organizar melhor a hierarquia entre os ofícios, estamos adotando um código de cores. Os ofícios superiores serão destacados em azul e os ofícios inferiores, em verde.
O principal ofício superior era o de Mordomo-Mor, cargo criado ainda durante a Idade Média e que se manteve até a queda da monarquia portuguesa. Como os outros ofícios, as atribuições do mordomo-mor era determinadas através de regimentos estabelecidos pelo próprio rei. De acordo com o Regimento do Mordomo Mor da Casa Real de 1792 (clique aqui para ler um cópia digital do original), as funções do mordomo-mor incluíam:
- o governo da Casa Real (o que, na prática, lhe dava poderes de chefe de governo)
- a nomeação de outros oficiais, realizar os pagamentos dos outros oficiais da Casa Real
- aconselhar o rei na concessão de títulos de nobreza.
Ao longo dos séculos, o mordomo-mor foi acumulando poderes em Portugal, a ponto de ter o mesmo status de um Primeiro Ministro.
Subordinados ao Mordomo-Mor estavam cargos como os escrivãos da matrícula, responsáveis pelo recenseamento dos nobres que viviam na Casa Real e que recebiam rendas do rei.; os escrivãos dos filhamentos, responsáveis pelo registro genealógico das famílias nobres; os moços de guarda roupas, responsáveis pela conservação das roupas de el-Rei; os tesoureiros da Casa Real; os moços das compras, que listavam as compras necessárias aos palácios; os físicos (médicos) e cirurgiões; o meirinho do Paço, representante da justiça real; o mestre de dança das damas;
Também estavam subordinados ao Mordomo-Mor todos os ofícios superiores que que atendiam à Mesa Real: o trinchante,que cortava a carne e entregava os pratos para o rei; o uchão, que guardava a carne de caça na despensa do rei e entregava os pratos prontos ao trinchante; o copeiro-mor, que servia as bebidas ao rei; o Mestre-Sala, espécie de mestre de cerimônias que conduzia as ocasiões solenes. Entre os ofícios inferiores subordinados ao Mordmo-Mor estavam o servidor de toalha, que colocava os pratos na mesa; o mantieiro, que retirava os pratos no fim da refeição; ; os moços da câmara e prestes da cozinha, que levavam os pratos da cozinha para a câmara de refeições do rei.
O Camareiro-Mor era o segundo oficial em importância na Casa Real, o que tinha mais contato direto com o rei, e suas funções incluíam vestir e despir o soberano e cuidar do quarto de dormir dele. Este oficial tinha o privilégio de dormir aos pés da cama do rei. A ele estavam subordinados os criados de câmara. O Sumiler ou Sumilher de Cortinas era responsável por abrir e fechar as cortinas que cercavam a cama do rei. O Reposteiro-Mor estava encarregado de trazer e afofar a almofada que o rei usaria na sua cadeira ou no genuflexório. O Escrivão da Câmara atuava como secretário particular do monarca. Para servir direta e exclusivamente ao soberano, havia ainda o Físico-Mor, o Cirurgião-Mor e o Capelão-Mor. Os gentis-homens da Câmara eram o equivalente às damas de companhia da rainha, só que para o rei.
Para cuidar das finanças da Casa Real, havia o Vedor da Casa, administrador financeiro; o Contador-Mor; o Tesoureiro-Mor; o Escrivão da Fazenda; o Esmoler-Mor, encarregado das esmolas e das doações realizadas pelo rei.
O Meirinho-Mor era o mais alto representante do Rei para assuntos de justiça e a ele se submetiam todos os outros meirinhos espalhados pelo reino.
O Almotacé-mor era responsável por abastecer a Corte de alimentos. O Caçador-Mor respondia pela caça às aves e o Falcoeiro-Mor, pela captura e adestramentos das aves de rapina que seriam usadas nas caçadas. Nas caçadas, aliás, o Monteiro-Mor cuidava da organização do evento para o rei, comandando os guardas que seguiam a pé e a cavalo, além dos criados que acompanhavam seus senhores. O Aposentador-Mor cuidava das acomodações da família real e da Corte em viagens. O Coudel-Mor cuidava dos cavalos do rei, controlando inclusive os cruzamentos para melhoramento da raça.
O Porteiro-Mor era responsável por abrir a porta da câmara real em cerimônias como o beija-mão e nas audiências que eles concedia aos súditos. Abaixo dele estavam o porteiro da maça e o porteiro da cana, que precediam o rei em seus cortejos dentro e fora do palácio.
Para garantir a segurança do soberano, o Guarda-Mor da Casa dormia à porta do seu quarto e comandava os capitães de quatro regimentos que faziam a guarda do rei dentro e fora do palácio. Os capitães eram considerados oficiais inferiores.
O Condestável de Portugal era o comandante do Exército. O Alferes-Mor carregava a bandeira de el-Rei. O Almirante comandava os navios da Armada Real Portuguesa; com a expansão dos domínios ultramarinos portuguese, foi criado o cargo de Almirante da Índia.
A Rainha, os Príncipes e os Duques ligados à família real que dispusessem de residência fora da Casa Real tinham seu próprio mordomo-mor, camareiro-mor e oficiais da Câmara e da Mesa. No caso da Rainha e das Princesas, havia ainda as damas-de-companhia ou damas de honor.
Ao longo do tempo, os cargos-mores deixaram de ser exercidos diretamente pelos nobres, que os confiavam a seus próprios funcionários de confiança. O título do cargo, contudo, permanecia na família e não raramente era transmitido de geração em geração. Havia casos, porém, em que a família falhava na sua função e então recebia o que era considerada a pior pena para um nobre: a expulsão da Corte.
REFERÊNCIAS
CARDIM, Pedro. “A Casa Real e os órgãos de governo no Portugal da segunda metade do Seiscentos”.
“Corte de Portugal, que conthem a origem e notícia de todos os officios que nella assistem, Titulos que teve, Tribunaes com que se governa, e as pessoas que os Reys ocuparam em cada hum.” Legislação de 1751.
“Regimento do Mordomo Mor da Casa Real”. Legislação de 1792.