A Modista do Desterro – Pauline Kisner

O café-da-manhã vitoriano

Nos últimos 200 anos, nossa alimentação mudou radicalmente. Numa época em que o café-da-manhã era chamado de “pequeno almoço” e o almoço, de “jantar”, as pessoas comiam muito diferente do que fazemos hoje. Não apenas os nomes e horários, mas o próprio conteúdo das refeições era diferente.

No post de hoje, vamos falar sobre o café-da-manhã na Inglaterra Vitoriana (1837-1901), com um foco especial no que fazia parte da mesa das pessoas que viviam nas cidades. E já adianto que, em breve, teremos artigos especiais sobre o que as pessoas comiam no Brasil Império! Então, prepare o chá e as torradinhas e vamos falar sobre o café-da-manhã vitoriano!

Diferentes classes sociais tinham acesso a diferentes produtos para o café-da-manhã e mesmo o tão democrático pãozinho branco, presente em praticamente todas as mesas do Brasil nos dias de hoje, era raro. Até a década de 1880, com o surgimento dos moinhos industrializados, a farinha de trigo era cara demais, fazendo com que o pão branco fosse um luxo pelo qual a maioria das pessoas não podia pagar. Aliás, boa parte das coisas que hoje estão presentes em nosso café-da-manhã era simplesmente caras demais para os trabalhadores e suas famílias.

O elevado preço da farinha branca, aliado à pressão popular para que o preço do pão  fosse mantido baixo, levava os padeiros a incorporarem novos ingredientes à massa. Essas adições iam desde farinha de arroz, para manter o pão clarinho, até serragem. O leite e seus derivados eram igualmente caros e não raras vezes o leite disponível para os mais pobres eram diluído em água. Só que a qualidade da água na Era Vitoriana era tão precária que as epidemias de cólera eram frequentes e muitas pessoas preferiam beber cerveja.

Café da manhã com a classe operária

Nas casas dos operários, o dia começava cedo, especialmente para as mulheres da casa. A mãe da família era a primeira a levantar, para acender o fogo, buscar água e colocá-la para ferver. Dependendo do trabalho dos membros da família, o dia podia começar por volta das 5h da manhã, com um despertador bem improvável: havia uma classe de trabalhadores cuja função era percorrer as ruas dos bairros operários acordando as pessoas com batidas nas portas ou janelas, por um preço módico (1 penny por mês).

Se houvesse pão, ele ficava reservado aos membros da família que tivessem os maiores pagamentos semanais. A lógica era simples: era preciso garantir a saúde do pai e dos filhos melhor remunerados, pois se eles ficassem doentes a família provavelmente passaria fome. Quando o pão estava disponível, normalmente era feito com o que hoje chamamos de farinha integral, que nem sempre era composta apenas por farinha…

O centro do café-da-manhã operário era o mingau de aveia. Mas não esse mingau doce que nós fazemos para crianças no Brasil. Na maioria das vezes, o mingau vitoriano era feito salgado mesmo. Publicado em 1852, “A Plain Cookery Book for the Working Class” era um livro de culinária destinado à dona de casa de meios mais modestos, mas que queria diversificar a alimentação da casa. Suas receitas são versões populares e acessíveis de pratos mais elaborados e trazem muitas sugestões de substituições mais baratas e reaproveitamento de ingredientes. É de lá que trazemos uma das versões mais simples do mingau vitoriano:

“Tome uma boa colher de sopa de grãos, misture bem com um cálice de água fria e leve ao fogo em um panela com 450ml de água fervente. Mexa sempre e deixe ferver por dez minutos; coloque em uma terrina e adicione manteiga e sal. Açúcar e uma bebida de sua preferência podem ser adicionados no lugar do sal e manteiga. Se o mingau for servido para um inválido, omite-se a manteiga”.

Para acompanhar o mingau, a escolha mais óbvia (e barata) era o chá. Mas não o chá em saquinhos que se compra em mercados: cada dona-de-casa precisava fazer sua própria mistura de ervas. Além do chá, as famílias operárias podiam optar pela cerveja (uma opção barata e que fornecia algumas calorias extras, embora esse conceito ainda não existisse na época), pelo café ou pelo chocolate quente.

Por mais incrível que possa parecer, o chocolate quente era uma alternativa barata. O cacau em pó era beneficiado e vendido por empresas como a Epps, que instruía os consumidores a misturarem duas colheres de sopa com leite ou água gelada e depois levar a mistura ao fogo. Acreditava-se ainda que o cacau atuava como um estimulante do corpo, o que era perfeito para iniciar o dia de um trabalhador.

café-da-manhã vitoriano cacau em pó

Aqueles que não tinham a sorte de morar com uma família em uma casa ou apartamento com cozinha, como era comum a tantos operários e prostitutas que alugavam quartos em pensões, tomavam seu café-da-manhã pelas ruas de Londres. Por toda a cidade havia um grande número de vendedores ambulantes que ofereciam desde muffins/cupcakes até peixe frito com batatas, além das padarias onde se podia comprar pão e artigos de confeitaria fresquinhos.

Café da manhã com a classe média

A classe média começava seu dia um pouco mais tarde. Apenas em casos excepcionais uma mulher de classe média trabalharia fora, então toda a rotina da casa era pensada e executada em torno do pai. Ser um homem de classe média na Inglaterra vitoriana significava trabalho em escritórios e órgãos públicos. Isso implicava uma jornada de trabalho que começava por volta das 9h da manhã e terminava às 17h.

O rendimento semanal de uma família vitoriana de classe média, com apenas o pai trabalhando fora chegava a ser de 4 a 6 vezes superior ao de uma família de operários, em que o pai e todos os filhos mais velhos trabalhavam nas fábricas ou no setor de serviços. Isso dava à família de classe média a possibilidade de uma alimentação mais nutritiva.

O café-da-manhã da classe média guarda muitas semelhanças com o full english breakfast de hoje: ovos (geralmente mexidos, cozidos ou apimentados), tiras de bacon, presunto, torradas com manteiga ou geleia, breakfast rolls (rolinhos de massa recheada e frita, doce ou salgada), hadoque defumado e salsichas eram pratos comuns. Para acompanhar, café, chá ou chocolate quente. Mas o café quase nunca era feito na hora: era comum que ele fosse torrado em casa e passado em quantidade suficiente para a semana toda, sendo aquecido conforme a necessidade.

café-da-manhã vitoriano torrador de café
Torradeira de café doméstica. Acervo do Museu de Londres.
Os grãos de café eram colocados no cilindro e brasas eram colocadas no reservatório inferior. O cilindro então era girado manualmente para garantir uma torra homogênea dos grãos.

Café da manhã com a classe alta

Toda refeição da classe alta era uma demonstração da riqueza da família, o que incluía o uso de porcelanas finas, faqueiro de prata e uma observação estrita da etiqueta. Uma família rica tinha acesso a todo tipo de alimentos com os quais a maioria dos operários podia apenas sonhar, a começar com o pão branco. Mas, em comparação com o café da manhã dos nossos dias, o menu dos vitorianos ricos pode parecer exagerado e nada saudável.

Dificilmente o café da manhã de uma casa rica seria servido antes das 10h. Sem a obrigatoriedade do trabalho, e com os vários compromissos sociais que muitas vezes iam madrugada adentro, homens e mulheres ricos levantavam consideravelmente mais tarde. É preciso levar também em conta que a toilette matinal das mulheres ricas era bastante demorada e não era raro que a mulher tomasse seu café da manhã na cama, sozinha.

O café da manhã das famílias vitorianas ricas podia ter costeletas assadas, ostras em conserva, camarões, rabanetes, passarinhos assados ou fritos, ouefs en cocotte (“ovo na forminha”, como é chamado em alguns lugares do Brasil), salmão defumado, presuntos e queijos finos, caviar russo (que na época já tinha a fama de ser o melhor do mundo), croquetes de peixe, rins de ovelha cozidos, maionese de peixes finos, torta de pombos, hambúrguer de frango, blanquette de cordeiro, filés de peixe ao molho de ervas…era um cardápio caro, variado e que mais parecia um almoço! Para acompanhar tudo isso, café de excelente qualidade (brasileiro, principalmente), leite e suco de frutas.

café-da-manhã vitoriano caviar russo
Potes de porcelana e cerâmica fina vinham diretamente do norte da Europa transportando frutos do mar para a mesa dos ricos.

Onde encontrar as receitas?

As receitas de café da manhã da classe média e da classe alta podem ser encontradas em qualquer livro de culinária do século 19, já que eles se destinavam principalmente às cozinheiras dessas casas. Muitos deles trazem não só as receitas, mas sugestões de menus completos e dicas sobre como preparar e servir uma refeição para seus convidados. Para nossa sorte, vários títulos do período estão disponíveis para download ou leitura online gratuita. Alguns deles:

Dois dos mais famosos livros de culinária da época são “A Plain Cookery Book for the Working Classes” (1852) e “The Book of Household Management” (1861). Nenhum dos dois, porém, chega a trazer um menu completo para o café-da-manhã, apenas algumas receitas esparsas com a indicação de poderem ser aproveitadas na primeira refeição do dia. Então vamos tirar nosso menu de um outro livro publicado um pouquinho mais tarde, “House and Home: a complete housewife’s guide”, de 1885.

Um das coisas que mais me chama a atenção nos cardápios desse livro é a sazonalidade: os menus são organizados por estação e respeitando os produtos que seriam encontrados em cada uma delas no hemisfério norte. Isso me chama a atenção porque é algo que nós, graças aos avanços das agropecuária, perdemos; hoje em dia consumimos frutas, vegetais e carnes o ano todo, independente da estação!

Algumas das sugestões super saudáveis dela para o café-da-manhã incluem:

  • Milho cozido, acompanhado de creme e/ou açúcar, mas sem a manteiga como fazemos aqui no Brasil
  • Rolinhos de batata
  • Pé de porco frito
  • Pães variados, inclusive torrada com manteiga.
  • Folhas de agrião (achei fit)
  • Mingaus variados (trigo, aveia, arroz, centeio, cevada)
  • Ragú de fígado
  • Brewis, um prato à base de bacalhau e pão dormido
  • Bife à milanesa
  • Batatas de todas as maneiras que você imaginar: fritas, cozidas, assadas
  • Omelete de ostras (phyno!)
  • Muffins
  • Frutas da estação, como mirtilos e morangos
  • Mingaus variados
  • Presunto e bacon
  • Ovos cozidos, mexidos ou na forma de omeletes variados
  • Chocolate quente ou gelado
  • Enguias
  • Waffles (com farinha de trigo ou de arroz)
  • Bacalhau com queijo
  • Rins
  • Croquetes de lagosta
  • Pepinos fritos
  • Linguiças e salsichas cozidas e fritas.

Pelo menos aqui no sul, onde ainda temos cidades de colonização italiana e alemã recente, algumas dessas coisas ainda aparecem na mesa do café-da-manhã, sem contar nos tentadores cafés coloniais. Em várias colônias alemãs, linguiça frita na banha de porco e waffle feito no fogão a lenha ainda fazem parte da alimentação do pessoal, especialmente em famílias que vivem mais no interior.

Ficou afim de experimentar alguma dessas receitas? Conte para mim qual delas deu vontade de experimentar e o que você não comeria de jeito nenhum.

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