A Modista do Desterro – Pauline Kisner

Fazendo um banyan/quimão do século 18 | #TrajeBrasilis

Sabe quando você enjoa de um projeto antes de chegar no fim dele, aí arranja outra coisa pra desconectar a cabeça e… simplesmente esquece completamente do projeto inicial? Poiseh, esse banyan/quimão foi um caso clássico desses e passou mais de dois meses parado até que eu criasse coragem de pegar na mão e terminar. Mas vocês já vão entender porquê.

Essa peça foi feita para o Traje Brasilis, um projeto de pesquisa e recriação de moda histórica brasileira. Meu objetivo é (tentar) reproduzir o traje dessa figura da esquerda da maneira mais fiel à imagem e às técnicas da época (anos 1780). Já falei bastante sobre essa figurinha aqui.

Banyan, Quimão ou Queimão era o nome de um casaco, muito popular no século 17 e 18, inspirado diretamente nos quimonos japoneses. Documentos textuais, como relatos de viajantes, descrevem o uso do banyan/quimão também aqui no Brasil Colônia. Mas, se na Europa o quimão era uma peça informal, usada em ambientes domésticos, esse não parece ter sido o caso no Brasil. Uma outra peculiaridade é o fato de que na Europa o quimão parece ter sido uma peça muito mais comum entre os homens, enquanto que na obra de Carlos Julião, o autor dos desenhos, somente mulheres aparecem vestindo quimões.

Já escrevi um artigo super detalhado sobre a história dessa peça e suas características lá no blog do Traje Brasilis, para quem quiser mais informações históricas. No post de hoje eu vou me concentrar em relatar como eu construí meu quimão e as descobertas que fiz nesse processo.

***alerta de post longo. estejam avisados***

Escolhendo materiais

Grande parte dos quimões anteriores a 1785 que existem em museus são feitos em seda. Em alguns raros casos encontramos sedas lisas, mas a maioria é de tecidos estampados, fabricados na Europa com referências orientais ou fabricados em tecelagens asiáticas, mas já tendo em vista o mercado e o gosto europeu. Claro que a seda da época era com fibras naturais, mas isso é algo totalmente fora dos meus recursos, então já comecei o projeto sabendo que usaria tecido sintético, provavelmente de cortina.

Como não consegui encontrar tecidos lisos com essa paleta de cores e as características necessárias (sem elastano, peso/caimento, tipo de trama, etc), precisei fazer uma concessão dentro das referências da época. No lugar do tafetá vermelho que eu planejava, acabei comprando um brocado de cortina, com um padrão adamascado parecido com as sedas bizarras. Minha principal referência era esse modelo com tecido de 1720, que faz parte do acervo do Victoria & Albert Museum:

E foi esse tecido que acabei comprando:

Pra vocês terem uma ideia, eu comprei esse tecido antes do Natal de 2019!

Inicialmente eu achava que o quimão da figurinha não fosse forrado e que os detalhes em azul (punho e barra da frente) fossem apenas isso, detalhes decorativos. Mas depois de observar peças em museus, pinturas e outros desenhos da época, comecei a questionar isso. É raro encontrar uma peça tão cara e valorizada como essa sem forro, porque o forro não só dava mais estrutura, mas ajudava a proteger a roupa contra o suor e a oleosidade da pele. Talvez Julião simplesmente não tenha pintado o forro de outra cor. Fiz um teste com o brocado e descobri que ele teria ZERO estrutura sozinho. Então lá fui comprar tecido para o forro.

Primeiro problema, o tom de azul quase impossível de encontrar. Segundo, todos os tecidos próximos que eu encontrava tinham elastano, eram leves demais ou foram do meu orçamento. Foi quando vi uma promoção de uma loja de tecidos daqui de Floripa e acabei comprando um crepe luxuosíssimo num tom maravilhoso e por uma pechincha. Não teria muita sobra e se eu errasse alguma coisa a peça estaria perdida, mas resolvi arriscar porque eu não tenho amor próprio. Não é a cor exata, mas a paleta ficou bonita e bem próxima do original.

O quimão não tem botões, laços, nada. Então a única outra coisa com a qual eu precisava me preocupar era com os punhos, que precisariam ser entretelados de alguma forma. Foi aí que comecei a pesquisar sobre técnicas de estruturação na alfaiataria do século 18 e descobri o buckram. Inclusive, tem tutorial dele em vídeo pra vocês:


Construindo o molde & cortando a peça

Meu ponto de partida foi esse corte de seda de 1760, que já foi bordada no formato para um quimão, de origem chinesa. Ele já me deu uma boa noção de como iniciar o desenho do molde:

VOLLMER, John E. Chinese Export Silks for the West. Catálogo digital da exposição. Acesso em 01 dez 2019. Disponível aqui.

E essa proposta de modelagem do Maurice Leloir para uma peça do final do século 17 me deu uma ideia mais clara de como seguir com o projeto:

Primeira questão era decidir a largura que essa evasê da barra teria. Pra isso pesquisei as larguras médias dos tecidos de seda produzidos no século 18 e descobri que eles variavam entre 65cm e 90cm, sendo mais comuns os de 80cm. Então abri meu brocado de cortina de 3m de largura e cortei ele em painéis de 80cm de largura por 2.5m de comprimento. Aí tracei o molde com base na largura de tecido disponível x as minhas medidas:

Seguindo aquele modelo bordado de 1760, optei por fazer o quimão com apenas três costuras: uma pra unir a peça nas costas e duas pra fechar as mangas e laterais. Assim, ele fica com um formato T, semelhante ao corte de um quimono.

Comecei cortando o brocado porque ele é um pouco mais firme. O tecido do forro escorrega muito, então optei por dividi-lo em painéis de 80cm, alfinetar no brocado já cortado e cortar uma peça pela outra. Levei umas 2h fazendo isso, até ter certeza de que tudo estava certinho no lugar:


Costurando o quimão

Com tecidos tão delicados, qualquer erro na costura poderia significar perda de material. Resolvi que não valia arriscar e encarei a primeira de muitas tarefas cansativas na construção dessa peça: alinhavar todo o quimão. Mas todo mesmo:

Ele ficou assim:

Depois disso passei os painéis pelo avesso na máquina de costura (ponto reto com linha 100% algodão em cima e embaixo), virei e assim escondi no interior as únicas costuras não históricas da peça. Depois alinhavei as bordas para poder quebrar as costuras no ferro de passar e comecei a unir a peça. A partir daqui todos os procedimentos foram historicamente corretos.

Para fechar a peça, usei um ponto característico do século 18 e que, apesar de ser descrito em livros de costura do século 19 como “ponto alemão”, não tinha um nome certo nos anos 1700. Já ensinei essa técnica numa série sobre pontos de mão para costura histórica que você encontra no meu canal no Youtube:

Para unir a peça usei a mesma linha 100% algodão, com agulhas de mão bem afiadas e lubrifiquei a linha com cera de abelha pura, o que também é uma técnica histórica. Encerar a linha aumenta a resistência dela à tensão e ajuda a linha a não embolar e passar com mais facilidade no tecido.

Gente, olha o acabamento interno MARAVILHOSO que essa costura tem:

E os pontos ficam totalmente imperceptíveis por fora:

Os punhos precisaram ser feitos separadamente e depois foram costurados à manga com a mesma técnica. Para fazer os punhos, coloquei uma camada do meu buckram médio e montei toda a estrutura à mão, para que não aparecessem as costuras

E como ficou?

Primeira coisa: cara, esse crepe é um carinho na pele da pessoa e agora eu sei porque é tão caro.

Segundo: esse negócio tem uma dignidade tão grande que eu acho que vou acabar usando fora do traje de época, hahahahahaaaa

Terceiro: desculpem as fotos improvisadas na pracinha deserta ao lado de casa, mas estamos em quarentena^^

Quimão fechado

A cara de quem não saía de casa há 10 dias.

Quimão aberto, porque eu sou uma quarentenada sensuellen:

Mesma pose da figurinha e tudo, hein?

Detalhe do punho:

Abertura total dele:

Sim, eu esqueci de passar a costura das costas ¬¬’

Agora o último projeto encantado que tem no quarto de costura é um par de stays 1780. Enquanto eu não posto ele por aqui, você pode acompanhar os vlogs de costura dele lá no meu canal:

Espero que tenham gostado ♥

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